O Estado de S. Paulo

Jogos de sexo e poder

Filme ‘A Favorita’ é ‘The Crown’ na versão de Lanthimos

- Luiz Carlos Merten

Existem atrações muito fortes na Mostra, neste sábado, 20 – A Casa Que Jack Construiu, o novo Lars Von Trier, em que o polêmico diretor viaja na mente de um serial killer (CineArte Petrobrás 1, 20h30); Não Me Toque, de Adina Pintilie, que venceu o Urso de Ouro, em fevereiro (Espaço Itaú – Frei Caneca 1, 17h); e Meu Querido Filho, de Mohamed Ben Attia, sobre o desespero de pai que procura o filho, cooptado pelo terror (Espaço Itaú – Pompeia 1, 21h). E há também A Favorita, do grego Yorgos Lanthimos, que valeu a Olivia Colman a Copa Volpi de interpreta­ção no recente Festival de Veneza, em setembro. A Favorita terá a primeira de suas duas sessões neste sábado, 20, no Frei Caneca 1, às 19h30. A próxima será no CineArte Petrobrás 1, no dia 24, às 21h30.

Olivia Colman! Você pode jogar suas fichas que ela será indicada para o próximo Oscar. A dúvida é se a Academia vai considerar seu papel como protagonis­ta. Em caso contrário, Emma Stone e/ou Rachel Weisz poderiam ser indicadas para melhor atriz – mas Rachel também pode ser indicada por Desobediên­cia, de Sebastián Lelio –, e Olivia seria imbatível como melhor coadjuvant­e. Parece arriscado fazer esse tipo de afirmação ainda faltando dois meses para terminar o ano – e três para as indicações, em janeiro –, mas Olivia é tão poderosa no papel de Queen Anne que parece difícil, senão impossível, imaginar que venha a surgir concorrent­e mais forte que ela.

Coincident­emente, outra parceria da atriz inglesa com o diretor é o destaque de filmes na TV deste sábado, 20 (leia na pág. C5). O Lagosta valeu a Lanthimos o prêmio do júri em Cannes, 2015, a indicação para o Oscar de roteiro original e o Bafta, o Oscar inglês, de melhor coadjuvant­e para Olivia. No ano seguinte, ela, uma atriz de culto, estourou para a popularida­de na minissérie The Crown.

O mais interessan­te é que ela fez carreira, na Inglaterra, como atriz de comédia. O papel de

O Lagosta tem toques de absurdo, como ocorre com frequência na obra do autor inglês. O

Lagosta passa-se num futuro distópico, no qual a solidão é malvista, e banida. O viúvo Colin Farrell é enviado para um lugar estranho, O Hotel. Se, em 45 dias, não encontrar uma companheir­a, será transforma­do em animal – a, ou o, lagosta do título. Olivia faz a gerente da instituiçã­o. O papel, bem escrito, faz com que ela diga coisas banais, mas que adquirem outros significad­os. Convenhamo­s que é preciso talento para segurar essa barra. Em A Favorita, como a rainha da Inglaterra, seu corpo vira território pelo qual se digladiam as personagen­s de Rachel e Emma – ambas, vale lembrar, detentoras do prêmio da Academia. Emma recebeu seu Oscar de melhor atriz por La La Land – Cantando Estações, de Damien Chazelle, e Rachel, o de melhor coadjuvant­e por O Jardineiro Fiel, de Fernando Meirelles.

Quando o filme começa, Rachel é a favorita da rainha, um favoritism­o conquistad­o na cama, como amante. Como a favorita, Rachel governa de fato, induzindo Anne a uma política impopular de impostos e guerras. Emma é uma parente distante, cujo pai empobreceu e vendeu a própria filha no jogo. Sem ter o que perder, Emma vai tentar a sorte na corte. Um incidente na carroça, nem é carruagem, que a conduz faz com que caia no barro – no esterco. Ela surge, assim, fedorenta na vida de Rachel, que a maltrata e direciona para um serviço na cozinha.

Mas Emma possui habilidade­s – conhece ervas medicinais, e elas são um alívio para a rainha, que sofre de crises terríveis de gota. Emma começa, dessa forma, sua ascensão. A rainha, que sofreu 17 abortos – 17! –, adora coelhos, que são os seus ‘filho(te)s’. Emma se aproveita disso, até porque Rachel não tem tempo para os animais, empenhada que está em reinar. E, finalmente, ampliando espaço aqui e ali, a jovem ambiciosa vai disputar, como amante, o corpo da rainha.

Outro diretor talvez contasse essa história de forma realista, e pronto. Lanthimos busca o estranhame­nto. Em alguns momentos, ele usa lentes distorcida­s – grandes angulares – para desestabil­izar os movimentos da câmera, e das personagen­s, em interiores. Alguns desses momentos já nasceram clássicos, ou dignos de antologia. Numa cena, querendo mostrar a rainha manipulada, ele fecha o plano no rosto de Olivia Colman. Ela olha – o quê, para quem? É um olhar meio bovino, de uma mulher – a rainha! – que parece estupidifi­cada. A câmera demora-se naquele rosto marcado, até que ela, sem dizer uma palavra, verte uma lágrima. O tema de A Favorita éo poder – seu cerimonial. As duas amantes querem exercer seu poder sobre a rainha, e que a corte saiba disso. Quem está mandando? Quem está no poder? Mas se engana quem pensa que a rainha é a vítima perfeita dessas artimanhas. Ela também faz seu jogo, e sabe ser cruel.

Lanthimos filma a instabilid­ade do mundo, e do poder. Quem pode manda. Quem depende obedece. Emma conquista a rainha colocando sua língua em lugares que Rachel não atingiu, mas até isso pode lhe ser cobrado, e com juro. É um filme forte, suntuoso – figurinos de Sandy Powell –, mas cujo objetivo não é encher os olhos. Lanthimos não tem ilusões. O mundo suntuoso é sórdido. Num certo sentido – anti-hollywoodi­ano.

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FILM4 PRODUCTION­S A rainha. Olivia no Parlamento: como as amantes, ela também manipula

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