O Estado de S. Paulo

Ensaios de ficção

Marcelino Freire explora contos e aforismos sobre Brasil e literatura em seu primeiro livro desde 2013

- Guilherme Sobota

Marcelino Freire conta que, quando morava no Recife, entre os seus 8 e 24 anos, o único veículo que manejava era a bicicleta. E no seu bagageiro ia de tudo. “Era para levar gente de carona, criança, jerimum, botijão de gás.” Seu novo livro é uma referência a essa ideia – Bagageiro, lançado agora pela editora José Olympio, é uma “reunião de ensaios de ficção”, contos e anotações que o escritor de 51 anos oferece aos leitores num tempo em que, segundo o próprio, “todo mundo quer ter ração”.

Agitador cultural e o oposto do que chama de “escritor bundão, aquele que fica sentado em frente ao computador”, Freire nunca fugiu dos debates ou escondeu sua posição. No livro, os contos/ensaios retratam personagen­s muitas vezes afligidos pela desigualda­de social ou mesmo desamparad­os em relação à sua arte. “Quem disse que eu não sou poeta (...)? Só porque não detenho livro nas livrarias, não chamego prêmios no meu pescoço?”, questiona a narradora de Sobre a Poesia. Em Sobre a Televisão, provoca: “Um cara, da quebrada, honesto, lá no auditório, em frente das câmeras, é humilhado. Pode ver. Participa de uma gincana, faz lá uns malabarism­os, dança um samba no caldeirão, balança um funk e leva cornetada na cara. Para ganhar o que no final, meu irmão?”.

Os contos mais carregados são alternados com os Ensaios de Ficção, reflexões agudas e divertidas sobre escritores e o meio literário, e chistes mais ou menos pornográfi­cos. “Eu não saio com um pretéritom­ais-que-perfeito pendurado no pescoço”, diz um. “Clarice é vírgula. Graciliano Ramos é ponto. Raduan Nassar é ponto e vírgula. Guimarães Rosa são dois-pontos”, reflete. “– Quanto é? – 20 cm.”

O livro tem lançamento marcado no Rio, no próximo sábado, dia 27, na Fábrica Bhering, às 15h. Antes, Marcelino se reuniu com a reportagem num bar na Vila Madalena, onde vive, para trocar algumas ideias.

• Um dos contos diz que “o escritor é sempre um filho da p*. O mundo pode cair. A coisa pode feder. E ele nem aí”. Como é que se dá o engajament­o de um escritor na política e na sociedade?

O escritor não é engajado nem na hora de fazer amor. Toda vez que vou a festival de literatura, saio mais virgem do que entrei (risos). Não acontece nada. Festival de teatro, de cinema, é muito mais animado. Se tem muita gente vivendo em bolhas, o escritor vive numa delas. Estou falando evidenteme­nte de um escritor com ideal romântico. Porque há muito tempo escritores na periferia têm ido aos bares e saído à rua. Festejado a literatura em lugares completame­nte distantes de suas casas e de seus escritório­s. Vai fechando as livrarias, e os idealistas reclamam. A literatura contemporâ­nea que interessa nunca esteve presente nessas estantes. Então digo que há um certo romantismo. Um glamour perdido. Esse escritor que coloco na Vila Madalena – que não deixa de ser o escritor que gerou meu desejo de ser escritor – é de uma família de escritores que o mundo pode estar acabando e ele lá sentado, achando que está resolvendo os problemas da humanidade só escrevendo. Não está. Tem que ir à rua.

• São cinco anos sem livro publicado, apesar das andanças, iniciativa­s editorais, etc. Por que o intervalo?

Eu tinha dois romances, mas eles estavam técnicos, frígidos. Um livro tem que me emocionar, me perturbar, no sentido de eu não saber o que ele é. Nossos Ossos foi assim. Achei que tinha uma fórmula depois disso. Fiz, comecei a fazer outros dois, nada. Nesse período, o Brasil se esfaceland­o. Era impeachmen­t, e eu olhava para os meus livros e dizia: que livro mais frouxo. Mas estava com esses contos e anotações. Sempre olho para os meus contos e quero saber quais livros eles pedem. Foram dois motivos para reuni-los no Bagageiro. Encontrei uma anotação que dizia: “hoje todo mundo quer ter ração”. Porque o conto Sobre a Merda é isso. Em todo o canto, tem cachorro, mas na Vila Madalena deve ter mais, não é possível. O povo é muito solitário, tem cachorro fazendo cocô em tudo que é canto. As ruas têm nomes bonitos (Purpurina, Girassol), mas tudo sujo. Aí eles levam o cachorro para passear, deixa do lado para comer croissant. Nunca vi tanto pet shop em minha vida. Disseram também: como eu tinha muita bagagem. Eu respondi que não tinha bagagem, tinha bagageiro. Os contos que originalme­nte tinham outros títulos, quando fui reunir, chamei de ensaios. Porque todo mundo quer ter “ração”. No meio de cada ensaio, para não parecer que estou professora­l, tem sempre um c* (risos).

• Como você está sentindo em relação ao ambiente nacional? Tá difícil. Porque eu acordo e quero ficar dormindo. É desanimado­r ver as coisas desacontec­endo, voltando no tempo. Pessoas completame­nte cegas, surdas. A gente que faz arte, provoca coisas, se sente muito desamparad­o. Ao ver que esse batalhão de gente não dá bola para a literatura. Dá uma preguiça grande.

• Numa entrevista ao ‘Estado’, o ministro da Cultura disse “aquilo que os artistas fazem tem impacto transforma­dor, mas a opinião deles tem muito menos”.

(risos) Ele diz que o Ministério não acabou, mas que Ministério? Acho que o último que tivemos foi o de Gilberto Gil e de Juca Ferreira, depois foi um atrapalho, mesmo no governo Dilma. Eu participav­a muito ativamente, ia a reuniões em Brasília. Acho que os Pontos de Cultura foram um momento bom na cultura no Brasil, de respeito institucio­nal. O nome “literatura” não aparece nos discursos oficiais, é muito difícil. Dizer que a opinião dos artistas não é levada a sério? Ele não sabe nem o que é artista. Cultura para eles é o quê? Peão de boiadeiro? Sei lá. Não lembro nem o nome dele.

• Já está pensando no próximo projeto?

Quero fazer um livro mais longo, com as histórias mais demoradas (sobre literatura ). Não sei se estou ficando velho, mas sabe o que estava com vontade de fazer? Antes que o Brasil morra. Começar a escrever uma espécie de perfil autobiográ­fico. Não gosto desse nome, não, tudo é autobiográ­fico. Se você contar uma história sua para mim, eu reimagino e a imaginação é autobiográ­fica. Aliás, esse pode ser o título do livro. Pronto. Não vão roubar. É a imaginação autobiográ­fica.

 ?? JF DIÓRIO/ESTADÃO ?? ‘Bagageiro’ Título do livro resume a ideia de reunir textos diversos na mesma obra
JF DIÓRIO/ESTADÃO ‘Bagageiro’ Título do livro resume a ideia de reunir textos diversos na mesma obra
 ?? BAGAGEIRO Autor: Marcelino Freire Editora: José Olympio (160 págs., R$ 34,90) ??
BAGAGEIRO Autor: Marcelino Freire Editora: José Olympio (160 págs., R$ 34,90)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil