O Estado de S. Paulo

Apesar de você

- MARCELO RUBENS PAIVA BLOG: HTTP://BLOG.ESTADAO.COM/BLOG/ MARCELORUB­ENSPAIVA E-MAIL: MARCELO.RUBENS.PAIVA@ESTADAO.COM MARCELO RUBENS PAIVA ESCREVE AOS SÁBADOS

Apesar de você, as cores do arco-íris continuarã­o as mesmas, ele sempre estará entre o céu e a terra, continuará lindo a nos emocionar. Mulheres continuarã­o a desejar mulheres, homens se beijarão e se amarão: o amor não tem limites, o desejo não tem barreiras. A composição familiar nunca mais será a mesma. Os jovens não deixarão de mudar padrões, quebrar regras. O amor vencerá a bala. A Inteligênc­ia sempre vencerá a burrice.

Drummond continuará arquiteto das palavras, Niemeyer, o poeta das formas. Ambos continuarã­o gauche na vida. Livros poderão ser proibidos, mas jamais serão esquecidos, poderão estar escondidos nos labirintos das estantes, no labirinto da nossa memória.

Apesar de você, a palavra será a melhor arma, o pensamento, livre, as ideias brotarão, os questionam­entos serão infinitos, é da nossa essência, é nossa vocação.

Apesar de você, florescerá na primavera, a solidaried­ade existirá, o altruísmo continuará vital como o ar. Apesar de você, a bondade estará entre nós. Vamos esperar para tudo melhorar, vamos esperar para o dia amanhecer sem ódio, sem tiros, vamos esperar a tempestade passar.

Apesar de você, Dom Quixote lutará contra moinhos de vento, Riobaldo, contra o amor por outro jagunço, Canudos, contra as tropas da insensatez, Zumbi, contra a escravidão. A dívida social não será paga. A história dos negros não será reescrita nem recontada. Uma ditadura continuará a ser assassina, e a tortura, nunca mais! Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.

Hoje é dia 20 de outubro. Hoje é celebrado o dia do poeta. Hoje é dia de Manuel Bandeira. Apesar de você, podemos ir embora pra Pasárgada, onde somos amigos do rei, termos o amor que quisermos, na cama que escolhermo­s e, se aqui não somos felizes, lá a existência será uma aventura, lá faremos ginástica, andaremos de bicicleta, montaremos em burros brabos e, cansados, nos deitaremos na beira do rio, porque em Pasárgada tem tudo, é outra civilizaçã­o, nos sentiremos seguros, e no dia mais triste, o mais triste de todos, amaremos quem quiser, porque lá somos amigos do rei.

Apesar de você, toda a cultura será acessível, Brecht proporá a revolução, a angústia estará na solidão, a dor da alma não terá cura, até o dia em que decidirmos não sofrer mais e agir. Sofreremos por causa de você, superaremo­s apesar de você. Nossos ancestrais não sairão do lugar, seus ensinament­os irão nos guiar, apesar de você. Os mortos continuarã­o vivos entre nós. Continuarã­o a nos inspirar. Luther King continuará mito. Jesus a nos defender. Simone de Beauvoir nos fez pensar. Gandhi é o mito da paz.

O índio guerreiro vai lutar, vai se esconder e sobreviver, vai defender a sua mata, unir-se aos animais, defender sua família, até o último guerreiro, e mais uma vez o mal não vencerá. Os rios terão o poder de se regenerar, os mares, de se recompor, a fumaça vai se dissipar, as bombas vão se calar. A floresta vai renascer das cinzas. A destruição não nos acometerá.

Cometas vão passar. O Universo continuará a se expandir e ser enigmático. As descoberta­s nos surpreende­rão. O conhecimen­to será sempre o caminho, não o ponto final. O desconheci­do será conhecido, para voltar a ser desconheci­do, que será conhecido, e desconheci­do. Teorias podem ser reescritas, nunca extintas ou ignoradas.

Michelange­lo será eternament­e belo. Leonardo, genial. Van Gogh pintará as cores do vento. Pollock, a representa­r nossa loucura. Picasso, a incongruên­cia. Miró será eternament­e arrebatado­r. Rimbaud será nosso poeta que faz da vida, versos, da sua andança, sentido: “Que venha a manhã, com brasas de satã, o dever é ardor. Ela foi encontrada. Quem? A eternidade é mar misturado ao sol”.

Shakespear­e nunca deixará de mostrar o horror de reinos, a loucura de reis. Campos de Carvalho narrarei de cor. Continuará píncaro do espetacula­r.

Lobos uivarão para a lua. Cachorros latirão uns para os outros. Gatos se esconderão na escuridão. Sabiás cantarão antes do amanhecer, nos despertand­o com a beleza da sua inconveniê­ncia. À noite, será sempre noite, por vezes desesperad­ora, por vezes longa demais, dolorida e saudosa. Enfim, o sol aparecerá. O ciclo das estações não se alternará. O minuto de daqui a pouco será depois o minuto que se foi. O amanhã será ontem.

A Justiça não será parcial, a defender os que mais têm. A verdade poderá nunca prevalecer. Mas nenhum doutor irá nos convencer do contrário. A polícia continuará a reprimir, a defender o bem de quem os têm. Mas nunca será eliminado o fato de sermos tão desiguais, de que quem não tem luta para dividir. Os grilhões se romperam. As amarras se romperão. Apesar de você.

Hoje é dia de poesia e samba. Todo dia é dia de samba. Apesar de você, o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente. Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparece­r. Amanhã será um novo dia. Apesar de você.

Hoje é dia 20 de outubro. Hoje é celebrado o dia do poeta. Hoje é dia de Manuel Bandeira

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