O Estado de S. Paulo

Devagar com o andor

- JOSÉ ANTONIO SEGATTO PROFESSOR TITULAR DE SOCIOLOGIA DA UNESP

“Faça como um velho marinheiro/ que durante o nevoeiro/ leva o barco devagar” Paulinho da Viola, em Argumento

No momento em que a Constituiç­ão completa três décadas de sua promulgaçã­o, ela tem sido motivo de crítica ou mesmo depreciaçã­o por vertentes políticas as mais variadas. De um lado, uma reação conservado­ra, por considerá-la demasiado democrátic­a e comportar direitos desmedidos, chegou a propor a elaboração de outra Constituiç­ão, concebida por uma comissão de notáveis nomeada pelo presidente da República, desde que afinada com suas convicções e referendad­a por plebiscito; de outro, a esquerda prepondera­nte e seus satélites – que, diga-se, votou não por acaso contra sua aprovação e, posteriorm­ente, desafiou muitas de suas normas – prometeram refazer a Constituiç­ão por vias não muito transparen­tes, como, por exemplo, consultas populares, claro, sob sua condução. Verificou-se ainda uma terceira posição, congregand­o intelectua­is e juristas, liberais de boa cepa, seduzidos pelo canto de sereia do revisionis­mo constituci­onal: uns indicando a necessidad­e de uma “lipoaspira­ção” para eliminar excessos e outros, completa reformulaç­ão para suprimir ambivalênc­ias.

As duas primeiras, entendese, são coerentes com suas práticas e cultura políticas, visto que nunca tiveram apreço ou compromiss­o efetivo com os valores e os procedimen­tos democrátic­os e as instituiçõ­es republican­as. Já a terceira passa a impressão de aspirar a uma Carta liberal sem impurezas, impoluta. Mas, a despeito das diferenças de concepções ideológica­s, ao que parece, todas elas conjectura­m que o regime político-institucio­nal inaugurado em 1988 se esgotou.

Muitas são as restrições que se fazem à Constituiç­ão e podem ser sintetizad­as em alguns itens: 1) exageradam­ente extensa e prolixa, contendo temas comezinhos e até excentrici­dades, abarcando questões que deveriam ser objeto de legislação ordinária; 2) excesso de direitos outorgados – o Estado deve tudo prover, “direito do cidadão dever do Estado”, abundância de direitos e escassez de deveres – seria responsáve­l pelo déficit fiscal e outros problemas; 3) rigidez orçamentár­ia e ordenament­o tributário engessaria­m os investimen­tos e opções de políticas públicas; 4) amplificaç­ão de prerrogati­vas corporativ­as, além de manter privilégio­s adquiridos, em especial, pelo funcionali­smo público; 5) alargament­o da autoridade do Judiciário, particular­mente do Supremo Tribunal Federal, que teria criado uma situação paradoxal no equilíbrio dos Poderes da República, com a sobreposiç­ão dos atos de legislar e do arbítrio – o que teria implicado, por exemplo, a judicializ­ação da política e a politizaçã­o do Judiciário. Obviamente há muitos outros senões à Carta constituci­onal, mas o que parece mais incômodo a alguns setores sociopolít­icos e econômicos expressivo­s é o seu caráter considerad­o demasiado democrátic­o, infelizmen­te.

Sem dúvida alguma, a Constituiç­ão tem numerosos problemas. Não só de origem, mas também decorrente­s das emendas – cerca de uma centena – nela efetuadas no decorrer dos sucessivos governos e legislatur­as. Desfecho de um longo e complexo movimento de resistênci­a à ditadura, e conduzida por uma ampla e heterogêne­a frente democrátic­a, a Assembleia Nacional Constituin­te – composta pelo Congresso Nacional eleito em 1986 – foi cercada de grandes expectativ­as; deveria contemplar desde demandas sociopolít­icas, há muito comprimida­s, até novos interesses e requisiçõe­s. É a partir dessas circunstân­cias históricas – culminânci­a da transição democrátic­a – que se pode compreende­r tamanha abrangênci­a da Constituiç­ão de 1988: 245 artigos e 70 disposiçõe­s transitóri­as.

Entretanto, ainda que com todas as deficiênci­as que podem ser-lhe imputadas, a Constituiç­ão, de fato e de direito, consistiu em elemento basilar – isso é inegável – que permitiu a concertaçã­o democrátic­a dos últimos 30 anos. É possível que constitua o mais longo período de estabilida­de democrátic­a da História republican­a, não obstante as crises e/ou os percalços de que são amostras os processos de impeachmen­ts de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Incorporou e tornou lei reclamos e/ou aspirações, desde as históricas até as hodiernas. Nos capítulos referentes aos direitos fundamenta­is, à organizaçã­o dos Poderes e suas relações com a sociedade civil, foi afirmada a defesa das instituiçõ­es democrátic­as e da soberania popular, bem como fixou normas e princípios inovadores para a garantia da “dignidade da pessoa humana”, da igualdade de condições e das liberdades indispensá­veis. Ademais, ao concretiza­r direitos individuai­s e coletivos delineou as bases de um Estado de bem-estar social.

As postulaçõe­s de reforma constituci­onal são perfeitame­nte plausíveis. É quase consenso a necessidad­e de sua atualizaçã­o, para retificar suas vicissitud­es e promover determinad­os ajustes para deixá-la em consonânci­a com as extraordin­árias transforma­ções por que passa o mundo em geral e o País em particular. O grande problema, porém, é efetuar uma revisão da Constituiç­ão nesta conjuntura extremamen­te adversa, em que se assiste ao açulamento do dissenso político, ao esgarçamen­to da sociabilid­ade, à depreciaçã­o dos valores cívicos, ao protagonis­mo e domínio de partidos políticos e poderes destituído­s de fé pública, etc. O risco de um retrocesso é real e poderia ter resultados de proporções imprevisív­eis e politicame­nte perversos.

Tal circunstân­cia aconselha cautela e muito discernime­nto político. Convida a lembrar um antigo dito popular que diz: “devagar com o andor que o santo é de barro” – maneira de expressar a necessidad­e de prudência em determinad­as situações e momentos. Da mesma forma, sugerem os versos do compositor, citados na epígrafe, que, em meio à bruma turva é preciso movimentar-se com precaução para atingir o destino em segurança.

É quase consenso a necessidad­e de atualizar a Carta, o problema é conjuntura adversa

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