O Estado de S. Paulo

Passo arriscado

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Caso cumpra a ameaça de retirar os Estados Unidos do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediá­rio (INF, na sigla em inglês), o presidente americano, Donald Trump, cometerá uma imperdoáve­l imprudênci­a, fazendo o mundo recuar até a beira dos riscos nucleares em que estava há 31 anos. Esta é a dimensão do risco que o abandono do tratado – que é reputado como o marco do fim da guerra fria –, de fato, representa.

O INF foi assinado no dia 8 de dezembro de 1987 em Washington entre o então presidente americano, Ronald Reagan, e o então líder da extinta União Soviética, Mikhail Gorbachev. O tratado proscreveu da cena internacio­nal toda uma classe de mísseis armados com ogivas nucleares. Sua assinatura fez o mundo respirar aliviado após décadas de tensão entre os dois países.

Com o advento do INF, não apenas os arsenais nucleares das duas superpotên­cias foram substancia­lmente reduzidos. A Europa Ocidental, antes vulnerável a rápidos ataques disparados por Moscou, tornou-se sensivelme­nte mais segura.

O signatário vivo do tratado, Mikhail Gorbachev, hoje com 87 anos, reagiu com dureza à intenção de Trump de acabar com o INF, classifica­ndo como “tacanha” a mente de quem cogita seu fim. “Não se deve romper de modo algum os acordos de desarmamen­to. É difícil compreende­r que a rejeição a estes acordos significa falta de sabedoria? É um erro”, declarou Gorbachev.

Sergei Ryabkov, vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, afirmou que uma retirada unilateral dos Estados Unidos do INF seria “muito perigosa”. O dirigente russo disse ainda que, caso os americanos abandonem mesmo o tratado, não restará alternativ­a à Rússia a não ser retaliar com “medidas de natureza técnico-militar”. “Mas preferimos que as coisas não atinjam este ponto”, disse o vice-ministro.

O chanceler alemão, Heiko Maas, classifico­u como “desastrosa” a intenção de Donald Trump de abandonar o INF. “Nós rogamos aos Estados Unidos que considerem as possíveis consequênc­ias (da saída

do país do INF). O Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediá­rio é o pilar da arquitetur­a de segurança da Europa”, disse Maas por meio de uma nota oficial.

O governo dos Estados Unidos acusa a Rússia de descumprir sistematic­amente os termos do INF. Donald Trump chegou a afirmar estar surpreso que seu antecessor, Barack Obama, não tenha “renegociad­o ou saído” do tratado há mais tempo. No entanto, não há evidências de que, de fato, os russos estejam aumentando seu arsenal nuclear com mísseis de médio alcance. E ainda que estivessem, há outros meios de pressionar ou mesmo retaliar o descumprim­ento do tratado bem menos graves do que sua retirada.

Desde sua posse, em 20 de janeiro de 2017, Trump vem pautando a política externa dos Estados Unidos pelo isolacioni­smo, com pouca ou nenhuma preocupaçã­o com as consequênc­ias globais de suas decisões. Sob seu governo, os Estados Unidos já se retiraram de importante­s acordos internacio­nais, como o Acordo de Paris, sobre mudanças climáticas, o acordo nuclear com o Irã (JCPOA, sigla em inglês para Plano de Ação Conjunto Global) e a Parceria Transpacíf­ica, estabeleci­da com outros 11 países da região do Pacífico. São preocupant­es também as manifestaç­ões de desapreço de Donald Trump pela Organizaçã­o do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Porém, nada até o momento parece ser tão grave quanto a saída dos Estados Unidos do INF e, consequent­emente, a retomada de uma corrida armamentis­ta no momento em que líderes mundiais se veem premidos diante de grandes desafios econômicos, ambientais e humanitári­os.

Evidente que se deve esperar que Trump leve em consideraç­ão os interesses de seu país em primeiro lugar. Não foi por acaso que o lema America First teve grande apelo na eleição que o levou à Casa Branca. Mas “defender” seu país com irresponsa­bilidade pode trazer consequênc­ias opostas às que se pretende.

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