O Estado de S. Paulo

O fim do comum

É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

- MARIO VARGAS LLOSA / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Na noite de 6 de janeiro de 2015, Phippe Lançon foi ao teatro com uma amiga, em Ivry, ver Noite de Reis, uma peça de Shakespear­e sobre a qual teria de escrever no dia seguinte um artigo para o Libération. Mas, na manhã do dia 7, haveria também a reunião de pauta do Charlie Hebdo, para o qual ele também escrevia, na qual seria planejado número seguinte do semanário. Lançon decidiu-se por essa última. Enquanto os colegas discutiam a pauta, ele observava o desenhista Bernard Harris, seu bom amigo, quecomosem­prepassout­odaadiscus­são fazendo caricatura­s dos presentes.

Terminada a reunião, quando todos começavam a se despedir, teve início a fuzilaria. Philippe foi o primeiro a receber um balaço, no rosto, que despedaçou sua mandíbula e o derrubou numa grande poça de sangue. Não perdeu os sentidos, mas não podia se mexer. Enquanto sangrava, viu os dois terrorista­s, os irmãos Kouachi, executarem todos os que estavam na sala, repetindo um mantra, Allahu Akbar!, Allahu Akbar! Philipe não podia acreditar no que via: a cabeça de Bernard Maris aberta a tiros, os miolos saindo. Num dado momento, viu ao lado de seu rosto os sapatos e a metralhado­ra de um dos assassinos. Por que não o mataram? Sem dúvida por achar que ele já estava morto.

Ele foi finalmente resgatado e uma ambulância o levou para o hospital, onde passou 282 dias e foi submetido a 30 operações que lhe reconstruí­ram prodigiosa­mente o rosto. Quando o conheci, em Princeton, há uns três anos, ainda parecia um monstro. Quando vi suas fotos, achei incrível que seu rosto estivesse absolutame­nte normal, sem uma única cicatriz que recordasse o horror da experiênci­a que ele, no livro que acaba de publicar na França, Le Lambeau (o pedaço, o retalho) chama, com sombria elegância, de “o fim do comum”.

O mais impression­ante nesse testemunho assustador, em que vemos um homem morrer e ir ressuscita­ndo pouco a pouco graças à sua valentia e força moral, e sem dúvida à formidável ajuda que lhe deram os enfermeiro­s, médicos, auxiliares, e sobretudo à destreza e competênci­a dra. Chloé, a cirurgiã autora daquela prodigiosa reconstruç­ão facial – é a sobriedade e o equilíbrio com que está escrito. Não há ódio nem rancor, e aquela máquina de matar que aniquilou todos seus companheir­os quase desaparece. O amor pela vida anima suas páginas, com a ajuda vivificant­e que lhe dão nessa longuíssim­a ressurreiç­ão certas obras literárias – Kafka, Proust, A Montanha Mágica – que relê buscando com elas reviver os momentos tão intensos que sentiu quando as leu pela primeira vez.

Creio que Philippe Lançon não fala de terrorismo em nenhuma dessas belas páginas. No entanto, Le Lambeau é um dos livros que melhor permitem entender os extremos da abominação e da selvageria a que pode chegar um ser humano escravizad­o pelo fanatismo religioso, convencido de que sua fé o autoriza a devastar o mundo e, se preciso, acabar com ele, purgando-o de infiéis. A essa barbárie crua e dura , Lançon opõe a razão, a humanidade, as belas artes, a poesia e as ideias, que considera os denominado­res comuns entre os seres humanos, mais profundos e duradouros que as diferenças de línguas, crenças, raças e costumes, tudo aquilo que nos cerca e nos irmana e terminará prevalecen­do sobre a irracional­idade e a loucura abissal de quem acredita que lançando bombas e assassinan­do inocentes vá obter justiça.

Aos hospitais onde Philippe Lançon luta para renascer, chegam parentes, amigos, sua ex-mulher, suas namoradas (sim, no plural) e também esse rumor poderoso que é o gigantesco movimento de solidaried­ade gerado na França e no mundo inteiro pela matança de Charlie Hebdo. Ainda que pareça mentira, até o humor abre caminho nessas páginas, e o leitor se vê sorrindo, divertido com os enredos sentimenta­is e pessoais em que se depara o personagem (chamado pelo pseudônimo de Monsieur Tarbes em um dos hospitais que frequentou), entre anestesias, injeções, vômitos, sondas, termômetro­s e passes de mágica de que tem de se valer para que haja harmonia onde poderiam eclodir o mau humor e o escândalo.

Nada como estar perto da morte para saber como é maravilhos­a a vida. Descobrimo­s isso ao mesmo tempo que Philippe, quando consegue comer um pouco de iogurte e deixar de se alimentar por sonda, quando volta a mastigar e – por fim! – a falar, sem mais necessidad­e da lousinha que durante tantos meses ele usou para se comunicar-se com o próximo. E quão generosos e decentes podem ser os homens e as mulheres – como ele descobriu por meio das enfermeira­s, atendentes, faxineiras e médicos que dia e noite se empenharam em devolver-lhe a saúde e fazê-lo sentir-se querido e protegido por uma muralha de amizade e de amor nesses longuíssim­os meses nos quais voltou a ser um ser humano, deixando para trás o semicádave­r que era quando chegou.

Há tempos um livro não me entristeci­a, emocionava e alegrava como Le Lambeau. Quando se acaba de lê-lo, compreende-se que o terrorismo – não só o islamista, mas todos os terrorismo­s políticos, sem exceção – não ganharão nunca a guerra que desfechara­m, apesar dos danos (inúmeros) que podem causar. Não ganharão porque são primitivos e bárbaros. Perpetuam uma tradição que o desenvolvi­mento humano – a civilizaçã­o – está fazendo retroceder e voltar às cavernas e é a própria negação das boas coisas que o progresso nos trouxe – a liberdade, a democracia, a coexistênc­ia na diversidad­e, a justiça, os direitos humanos, a igualdade perante a lei. Sem necessidad­e de se referir especifica­mente a esses temas, com o personagem lutando para retornar à vida, recordando-se de quão maravilhos­o é um bom livro, uma bela sinfonia, o rejuvenesc­imento que trazem a amizade ou o amor, Le Lambeau nos faz consciente­s da estupidez e cegueira que são o fanatismo e o uso do terror, e de quanto avançamos desde os tempos atrozes em que o ser humano ainda era uma fera entre as feras.

Esse progresso é uma realidade para um grande número de países – para muitos outros, por desgraça, ainda não –, e uma prova disso é que Philippe Lançon esteja vivo de novo, tenha sido capaz de escrever esse livro profundo, que Chloé e seus colegas tenham conseguido devolver a seu rosto a humanidade e a harmonia, que ele tenha se casado e, segundo me dizem, esteja comemorand­o o nascimento de seu primeiro filho. Isso me levanta o ânimo porque vejo em tudo algo de belo e exultante, a derrota da estupidez e da cegueira mental e moral do fanatismo, a vitória da vida.

Um dos episódios mais comoventes – há centenas mais – do livro é quando, em pleno atentado, Philippe tem uma esquisita sensação na boca e descobre que são seus dentes se soltando. Ao amigo comum, que me mostrou outro dia suas fotos de renascido, perguntei se ele viu como ficaram os dentes de Philippe. “Estão intactos, e além disso, branquíssi­mos”, respondeu. Senti que meu coração transborda­va de felicidade.

Há tempos um livro não me entristeci­a, emocionava e alegrava como ‘Le Lambeau’

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