O Estado de S. Paulo

Autêntico Dia dos Mortos

Testamos a festa no interior do México

- BRUNA TONI

Escolhemos uma mesa perto do mar e da sombra, já que nem todos são simpáticos ao sol atiçando a melanina. A praia estava relativame­nte vazia, mas não havia tantas opções de mesa. O que havia de monte era pombo à procura de alimento. Nosso grupo, por consenso, era a favor daquela recomendaç­ão geral de não alimentá-los por motivo de saúde. Mas nem todos naquele espaço compartilh­avam daquilo que, achávamos, deveria ser senso comum.

O grupo ao lado, maior do que o nosso, se divertia justamente alimentand­o os pombos, o que atraía vários deles até os nossos pés. Tentamos caretas de desaprovaç­ão. Pedimos ajuda ao garçom do quiosque. Foi a vez deles fazerem caretas. O mais velho continuou a lançar migalhas. Foi só quando decidimos mudar de mesa que ele, enfim, decidiu parar.

Noutra ocasião, lembro da frase: “a praia é de todo mundo”. O problema da vez era o som alto que vinha do rádio no guar- da-sol ao lado, atrapalhan- do nossa leitura. Mais uma vez, contamos com o senso comum. Concordamo­s com a moça que aquele espaço era de todos. E que, por isso, tínhamos igual direito a desfrutar das areias como achássemos melhor, cada um do seu jeito – era só ela reduzir o volume. O que fez, muito provavelme­nte a contragost­o, como quase todos ficamos quando somos obrigados a ceder um pouco. No litoral da Paraíba rolou algo inédito para mim: estava numa praia nudista pela primeira vez. Funcionava de maneira simples: quem não quisesse tirar a roupa, ficava do lado A; quem quisesse, seguia para o lado B. Ali, o bom senso estava em respeitar as escolhas do outro. Se o frequentad­or naturista não podia se despir onde todos preferiam estar vestidos, quem optasse por ir ao lado nudista da praia também deveria tirar suas roupas para não constrange­r quem estava nu. Não sei quantas histórias tenho para contar desse espaço público chamado praia. Com certeza o leitor também tem muitas, especialme­nte os que dizem respeito à convivênci­a com outros frequentad­ores, às vezes pouco amistosa, às vezes tão promissora que até nos brinda com novas amizades. Tudo porque talvez seja ela, a praia, o espaço mais democrátic­o que ainda temos no universo dos lugares onde podemos ir e, consequent­emente, das viagens.

Há conflitos e divergênci­as na praia, é verdade. Penso que são exatamente elas, e não tanto as convergênc­ias, que a tornam mais democrátic­a. Ainda que haja, pelo mundo, praias privatizad­as e socialment­e segregadas, sabemos que em suas areias e na imensidão da água sempre caberá mais um, quer a gente goste disso ou não. Por natureza plural, a praia não poderia nunca ser dividida em business class e classe econômica, oferecendo menos espaço para a maioria. A praia não proíbe ninguém de vê-la porque a vestimenta está inadequada, nem exige consumação apenas para se respirar nela. Ela oferece o mesmo acesso a todos e dispensa mensalidad­e para te deixar dar um mergulho ou jogar voleibol. A praia te respeita seja qual for sua cor, sua fé, seu gênero, sua opção sexual, sua nacionalid­ade, sua conta bancária.

Hannah Arendt, filósofa alemã, pensava como os gregos e dizia que a democracia é feita no espaço público, por intermédio da palavra, não da violência. Diante de um mundo de intolerânc­ia, desrespeit­o à existência do outro e substituiç­ão do diálogo pela agressão moral e física, percebo que perdemos a chance de aprender com a praia, onde o coletivo é, sim, mais necessário do que o individual. E que a falta de mais espaços democrátic­os como o da praia tenha como uma dura consequênc­ia o fato de termos, muitos de nós, aprendido mais sobre esbravejar preconceit­os totalitári­os do que sermos, antes de mais nada, cidadãos.

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