O Estado de S. Paulo

Dia dos Mortos ‘de raiz’ no interior

- Luciana Dyniewicz TEPOZTLÁN

Um desfile com caveiras e esqueletos gigantes, carros alegóricos e centenas de atrizes no papel de Catrina, a tradiciona­l personagem mexicana que representa a morte. Foi o que pedi para ver quando combinei com amigos mexicanos de passar o Dia dos Mortos com eles. Uma larga risada e um sonoro “não” foi a resposta que obtive.

A explicação que me deram para a recusa foi que aquele desfile nada tem a ver com a cultura do país. Havia sido criado um ano antes, após o sucesso do filme 007 Contra Spectre (2015), em que a sequência de abertura “retrata” as comemoraçõ­es do Dia dos Mortos na Cidade do México. O desfile temático mostrado no filme é uma invenção.

O primeiro desfile fora das telas ocorreu em 2016 e foi bastante criticado pela população em geral, justamente por não ser algo legítimo. No ano passado, as críticas se reduziram com a inserção de elementos culturais, como dança e música, de distintas regiões do México. Neste ano, será realizado no sábado (27), das 11 às 16 horas, no Paseo de la Reforma, uma das principais avenidas da capital mexicana.

Já para quem quiser viver uma experiênci­a realmente local, o melhor é sair da metrópole e ir para o interior. As pequenas cidades de Oaxaca, um dos Estados com tradições indígenas mais fortes do país, se enchem de altares, flores, velas e músicas em homenagem ao mortos e estão entre as mais bonitas para se visitar nessa época do ano.

Um bom lugar. Optei por Tepoztlán, uma cidade de 40 mil habitantes no Estado de Morelos e a cerca de 80 quilômetro­s da capital mexicana, mais pela conveniênc­ia da proximidad­e do que por ser um destino famoso de Dia dos Mortos. Cheguei na tarde de 1.º de novembro, poucas horas antes das principais celebraçõe­s – a virada para o dia 2 é o momento mais importante do Dia dos Mortos –, e me deparei com a rua repleta de adultos e crianças fantasiado­s e com o rosto pintado de caveira, além de artistas em pernas de pau.

Em seguida, vi um cartaz na parede de uma casa que alertava que as fantasias também não fazem parte da tradição mexicana. São uma importação cultural dos Estados Unidos, onde o Dia das Bruxas é celebrado na mesma época. “Não às fantasias. Não ao Halloween. Festejemos com orgulho nossas tradições mexicanas”, dizia o cartaz.

E as tradições locais são muitas. A principal é o altar em homenagem aos mortos. Há quem monte o seu dentro de casa, há quem faça na calçada e há os da

prefeitura, na praça principal. De noite, todos saem para vêlos. O clima é afetuoso: alguns deixam as portas de casa abertas para que desconheci­dos entrem para observar o altar. Outros distribuem na rua bebidas e doces, também para desconheci­dos, em uma bonita partilha.

Segundo a lenda, é no Dia dos Mortos que os antepassad­os voltam para visitar familiares (você assistiu à animação da Disney Viva! A Vida é uma Festa?). O altar é montado para que achem suas casas. São colocadas fotos, objetos e alimentos preferidos dos mortos – um livro, um violão, um copinho com tequila, café, cigarro... Há caveirinha­s de açúcar e o pão de morto, decorado com tirinhas de massa imitando ossos.

Os altares ficam montados por uma semana, período em que os mortos permanecem na Terra. Depois, os alimentos são jogados fora – e dizem que o sabor deles se vai antes, já que foram degustados pelos visitantes do outro mundo.

Também é costume ir ao cemitério à noite e durante todo o dia 2, não apenas para decorar os túmulos dos parentes com os alaranjado­s cravos-de-defunto, mas para ficar o dia todo por ali. Os familiares usam como enfeite também o “papel picado”: folhas coloridas amarradas em um barbante, como bandeirinh­as de festa junina, com desenhos de caveira recortados).

Essa decoração, aliás, é vista em todo o país, como se fosse Papai Noel no Natal. Nas fachadas das casas, nos shoppings, nos restaurant­es, nos condomínio­s e, já no aeroporto, você é recebido com ela.

Ao cemitério, as pessoas levam também seu baldinho de cerveja. Abrem as latinhas e ficam ali conversand­o ao lado do túmulo da família. Algumas com caixa de som, outras pagam para músicos profission­ais – que ficam circulando pelo cemitério – cantarem a canção favorita de seu parente morto. Na entrada, a comunidade se junta para preparar o almoço e cadeiras são colocadas no corredor principal, onde todos se sentam para comer. É um costume da população mais simples.

A visita ao cemitério pode parecer um passeio mórbido, mas é nela que você vai mergulhar mais profundame­nte na cultura local. O clima é de tranquilid­ade e saudade, não de tristeza.

Já tinha ouvido falar que o Dia dos Mortos é o Carnaval do México. Na verdade, são muito diferentes. A comemoraçã­o por lá parece ser silenciosa e traz paz, apesar das ruas cheias e barulhenta­s. Impera um sentimento de partilha. Talvez a celebração esteja mais próxima do Natal, com a reunião de famílias e crianças cantando músicas da época.

“À meia-noite, as caveiras saem para passear. Muito alegres, pegam seus carros, suas bicicletas e também seus patinetes”, cantam os pequenos com rostos pintados de caveira. Nesse momento, a linha que separa a tradição mexicana da americana parece tênue demais, e a mistura de costumes pode deixar, para o estrangeir­o, a data ainda mais atraente e mágica.

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LUCIANA DYNIEWICZ/ESTADÃO Som da paz. Artistas em ação no cemitério de Tepoztlán
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