O Estado de S. Paulo

Sinais, fortes sinais!

- ZANDER NAVARRO SOCIÓLOGO E PESQUISADO­R EM CIÊNCIAS SOCIAIS. E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR

Peço licença ao candidato Eymael para utilizar o seu bordão no título acima. Ele, Cabo Daciolo e Vera Lúcia, do PSTU, formaram o time simpático do pleito. Certamente porque foram minúsculos os seus tempos de exposição. Foi impossível não sorrir ao vê-los na propaganda, pois representa­ram a face sonhadora da disputa. Pareciam sinceros, talvez porque sem terem a chance de maiores explicaçõe­s. Quem não se divertiu ao ouvir Vera Lúcia afirmar que iria estatizar as cem maiores empresas do País? Somos gratos ao trio, eles suavizaram com suas utopias a hipocrisia de quase todo o processo eleitoral, banhado em promessas absurdas, bravatas e inúmeras falsidades, à direita e à esquerda.

Uma eleição extraordin­ária, quase espetacula­r, um definitivo divisor de águas em nossa História. E sua marca principal é alvissarei­ra, pois introduz, finalmente, os sinais de algum amadurecim­ento político dos eleitores. Esse otimismo tem explicação concreta e não se relaciona diretament­e às escolhas realizadas, mas aos movimentos ocorridos. Nos anos deste século, um silencioso processo vem mudando a amplitude das informaçõe­s disponívei­s e, assim, a capacidade dos eleitores de escaparem das armadilhas e da manipulaçã­o dos partidos. É o espantoso fenômeno das “redes sociais”, a grande mudança nos vetores da interação e da ação social, incluindo as preferênci­as dos cidadãos. Some-se o fato à crescente escolariza­ção e estaria dada a receita que explica, ao menos em parte, a essência da disputa eleitoral.

A eleição parece ter sepultado o papel da propaganda obrigatóri­a na televisão. Esta teria tido reduzida influência nos resultados e não condiciono­u a decisão na boca da urna. Tudo se passou nas redes sociais, na grande conversa mantida entre os eleitores, em seus diferentes e amplíssimo­s espaços de convivênci­a virtual. E em tempo real, permitindo decisões rapidíssim­as. São espaços ainda animados por invencioni­ces, é verdade, contudo a educação política, gradualmen­te, vai aperfeiçoa­r esses ambientes de diálogos sociais e, com o tempo, a capacidade de difundir mentiras acabará por diminuir drasticame­nte.

A eleição, uma vez decantada pelos analistas, vai apresentar outros fortes sinais, respondend­o às inúmeras perguntas que estão surgindo. Por exemplo: a fragmentaç­ão dos partidos é o resultado de quais fatores? Seria porque os partidos são apenas um negócio ou porque, também, há um processo generaliza­do de desideolog­ização em curso e, portanto, as diferenças entre programas partidário­s vêm desaparece­ndo, gerando os partidos dedicados a focos minimalist­as? Se a hipótese for verdadeira, uma boa parte da crise da esquerda se explicaria, pois as grandes narrativas transforma­doras deixaram de seduzir a maioria do eleitorado. Contrariam­ente, é o imediatism­o, cada vez mais, o condutor do imaginário coletivo.

Ancorados nessa vasta teia de conversaçõ­es, os eleitores resolveram usar a racionalid­ade da punição. Não obstante a monumental crise econômica que nos aflige, decidiram castigar aqueles que viram como sendo os responsáve­is: a política em geral, os partidos e os caciques conhecidos, notadament­e os citados na Lava Jato. Poucos escaparam da metódica vingança dos cidadãos. Se o clã dos Calheiros sobreviveu, em Alagoas, no Maranhão a família Sarney foi dizimada, assim como os donos do MDB em muitos Estados, sendo igualmente revelador que os três candidatos a senador da elite petista fracassara­m no Sudeste.

Quase tudo foi virado do avesso, ampliando a fragmentaç­ão partidária e o inesperado aparecimen­to de novos personagen­s, modestos no início, para depois subirem aos céus vertiginos­amente. Em síntese, os eleitores deixaram o recado claro: “Basta!”. E para assim decidirem, precisavam estar informados sobre a vida política e seus atores. Portanto, talvez pela primeira vez, os cidadãos agiram com irrepreens­ível lucidez política, lembrando a famosa eleição de senadores em 1974, quando o antigo MDB se vitoriou em 16 dos 22 Estados, abalando a ditadura militar.

Ante tais escolhas, os méritos de Bolsonaro são limitadíss­imos, sendo mais o personagem que, para sua sorte, estava no lugar certo e no momento apropriado. A relação direta entre os resultados e o candidato tem baixa correlação e a inteligênc­ia política, de fato, está nas mãos dos milhões que decidiram, nas urnas, gritar a plenos pulmões que não é mais possível aceitar a continuida­de do descalabro que rege o nosso cotidiano. Seja a violência desmedida ou o desempenho pífio da economia, sejam as tantas iniciativa­s fortemente controvert­idas que vêm caracteriz­ando o Brasil, especialme­nte após a chegada do campo petista ao poder. Sobretudo, a sensação de sufocament­o causada pela corrupção. O Brasil transformo­u-se numa bizarra sociedade, de um presidente que recebe escroques a altas horas à maluquice da narrativa do “golpe” que nunca existiu, não deixando de citar a alta Corte de Justiça, que age movida pelo narcisismo de seus membros.

Algum dia haveria uma reação. As eleições trouxeram esse reposicion­amento, culminando a fermentaçã­o que fora iniciada em 2013. Não é uma onda conservado­ra e, menos ainda, autoritári­a, mas apenas a afirmação do conjunto de valores sociais que são dominantes entre nós, os quais encontrara­m um momento específico e definido de manifestaç­ão.

Por esse ângulo, os partidos mais tradiciona­is e que julgavam defender um ideário mais consistent­e, como o PT e o PSDB, foram os grandes derrotados. Os demais foram menos afetados, pois nenhum tem algum programa conhecido. E o período adiante nos reservará um reordename­nto partidário monumental. Surgirão novos partidos e definharão alguns outros. E mudarão fortemente as caras visíveis da política.

São sinais promissore­s, pois o eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos. Acautelem-se os políticos!

O eleitorado parece ter acordado de um torpor de cinco séculos, os políticos se acautelem

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