O Estado de S. Paulo

Mussolini, quem diria, tinha mais educação

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

(Se você acredita sinceramen­te que defende a liberdade, este artigo foi escrito para os seus olhos.)

Em política, palavras são atos. Falar é fazer. A liderança política age na linguagem e, pela palavra, agrega ou divide seus pares e seus seguidores. Disso sabemos, certo?

Talvez não. Apoiadores de Bolsonaro (refiro-me àqueles minimament­e ilustrados) desprezam as palavras dele. Acham que seus pronunciam­entos infamantes não têm importânci­a. Acham que poderão controlá-lo depois de eleito, que farão dele um fantoche a serviço das causas liberais. Estão enganados.

Ainda que seja tarde, olhemos, uma vez mais, para as palavras do deputado. No domingo, num discurso transmitid­o por celular em que ele se dirigiu, à distância, a manifestan­tes de rua, ele disparou novas saraivadas de descalabro­s. Alguns repetidos, alguns novos. O tom não é o de um candidato a presidente de uma República democrátic­a, mas o de alguém que se lança como futuro senhor de todos os poderes, com atribuiçõe­s plenas de fazer leis, de aplicá-las e depois executar as penas, de banir quem quiser e de prender quem bem entender.

Exemplo: “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa Pátria”. Outro exemplo: “Essa Pátria é nossa. Não é dessa gangue que tem a bandeira vermelha e tem a cabeça lavada”.

Em outra passagem, roga sua condenação prévia contra o que vem chamando grosseiram­ente de “ativismo”: “Bandido do MST, bandido do MTST, as ações de vocês serão tipificada­s como terrorismo! Vocês não levarão mais o terror ao campo ou à cidade. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis, ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba!”.

Em transe de onipotênci­a, anuncia que seu adversário nesta eleição também será preso. Dirigindo-se a Lula, que “vai apodrecer na cadeia”, assegura: “Aguarde, o Haddad vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao seu lado. Já que vocês se amam tanto, vocês vão apodrecer na cadeia”.

Com que autoridade ele fala isso? Que mandato imagina que receberá das urnas? O de xerife nacional? O mais chocante, porém, não é isso. O mais chocante é que seus apoiadores – alguns cultos, eruditos – nem se incomodam. Fingem que tais pronunciam­entos não terão consequênc­ias para a ordem democrátic­a ou para o tratamento respeitoso entre os compatriot­as. Fingem que o presidente da República não tem mais o dever da urbanidade. O que se passa?

Mas a declaração mais escabrosa de Jair Bolsonaro no domingo não foi nenhuma dessas. O pior insulto não teve como alvo a integridad­e física de seus desafetos, mas a liberdade de imprensa. E outra vez ficou o dito pelo não dito. Ninguém protestou.

No momento em que conclamava seus cabos eleitorais a seguirem “mobilizado­s” até o dia 28, ele descreveu as condições ideais do que entende por um clima de eleições democrátic­as: “Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo!”. E prosseguiu: “Nós ganharemos essa guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabi­lidade. A Folha de S.Paulo éo

(sic) maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitár­ia do governo. Imprensa livre: parabéns! Imprensa vendida: meus pêsames!”

Sim, você leu corretamen­te. Ele celebra a “imprensa livre”,

desde que essa imprensa siga o que ele, Bolsonaro, entende como “responsabi­lidade”. Pelo que lemos com absoluta clareza em seus gritos bélicos – bélicos, sim, pois o candidato se refere à eleição como uma “guerra” –, a “imprensa livre” terá direito de existir no governo dele, mas deve ser também uma imprensa que ele considere “responsáve­l”. A Folha de S.Paulo, bem, essa aí ele parece considerar “imprensa vendida”. Por quê? Ele não explica. Talvez porque a Folha tenha publicado reportagen­s sobre as declaraçõe­s de sua ex-mulher, que, no passado, se disse ameaçada por ele, e sobre mecanismos de difusão de notícias fraudulent­as no WhatsApp que o teriam favorecido. De todo modo, o orador não esclarece nada.

Em seu telecomíci­o anti-imprensa, o candidato extrapolou. Ameaçou a Folha com o corte futuro de “verba publicitár­ia do governo”. Nesse ponto, suas inclinaçõe­s pouco democrátic­as se escancaram. A partir de uma distorção da nossa República – a profusão de dinheiro público no mercado anunciante –, promete produzir uma segunda distorção, muito mais deletéria.

Para entender. Você sabe que os recursos da União, dos Estados, dos municípios e das empresas estatais, todos somados, totalizam bilhões de reais. A conta exata é impossível, pois os dados não são abertos. Mesmo assim, é possível afirmar que o maior anunciante do mercado publicitár­io no Brasil é o dinheiro público. Trata-se de uma enorme distorção. Diante disso, em vez de prometer mudar o quadro, Bolsonaro promete tirar proveito da distorção para punir os jornais que o criticam. E faz isso abertament­e, sem a menor cerimônia. De queixo empinado, atropela o dever que teria, como administra­dor público, de agir conforme o princípio constituci­onal da impessoali­dade. Ignora que ao servidor público não é facultada discricion­ariedade de comprar espaços publicitár­ios conforme suas preferênci­as partidária­s. Ele não está nem aí. Seria uma ilegalidad­e, mas ele não liga.

Nem Benito Mussolini se atreveria a tanto. No dia 27 de janeiro de 1924, já primeiro-ministro, na abertura do Congresso de Imprensa Fascista e Philofasci­sta, ele declarou que “a liberdade de imprensa não é somente um direito, mas um dever” (para quem duvida há uma nota a respeito na primeira página do jornal A Noite de 28 de janeiro de 1924). Nada de errado com a frase. O primeiro dever da imprensa é mesmo ser livre.

Mussolini nunca foi um liberal, mas, ao menos durante um tempo, segurava o facho. Tinha alguma educação. Podia até pensar que o primeiro dever da imprensa era elogiá-lo, mas maneirava no discurso. Sabia que a liberdade tinha defensores atentos. E hoje?

Bolsonaro: ou o MST e o MTST se submetem à lei ou “vão fazer companhia ao cachaceiro”...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil