O Estado de S. Paulo

O povo é o eterno culpado

- JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQU­E PROFESSOR TITULAR DE CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA USP

Oprevisíve­l resultado do segundo turno da eleição presidenci­al de 2018 tem sido atribuído, no Brasil e no exterior, a um cresciment­o avassalado­r do conservado­rismo do eleitor brasileiro. Esse diagnóstic­o implica acusar o povo brasileiro de ser incapaz de votar racionalme­nte, e só se explica como efeito do que chamarei de vitimologi­a eleitoral.

Criada para traçar um perfil das vítimas como instrument­o para explicar a motivação de um crime e o comportame­nto de criminosos, a técnica da vitimologi­a tem sido empregada na análise do comportame­nto político, quando se trata de explicar um resultado eleitoral inesperado: prendam-se os suspeitos de sempre.

Ora, não é razoável acusar o eleitorado pelo resultado das eleições, porque o voto não é uma escolha de livre-arbítrio do eleitor, mas, sim, uma opção limitada por uma agenda que lhe é imposta pelo sistema eleitoral, pelo sistema partidário que dele decorre e pelas cúpulas partidária­s, pressionad­as mais pelos interesses da classe dirigente do que pelo clamor popular. A liberdade política do cidadão brasileiro pode ser considerad­a uma liberdade condiciona­da.

O voto popular limita-se a responder a uma agenda compulsóri­a, construída de cima para baixo, não é uma livre escolha. A pesquisa sobre comportame­nto eleitoral tem foco na descrição estatístic­a, ou na interpreta­ção “qualitativ­a” de variáveis presentes nas respostas dos eleitores, mas nada ensina sobre o processo político que criou o leque de escolhas que lhe são impostas. É como um experiment­o em que se consideram as respostas, ignorando inteiramen­te os estímulos que lhes deram origem.

Parte-se sempre do perfil do eleitor, pressupond­o que o povo é o único fator que determina o resultado das urnas. O processo eleitoral envolve, porém, uma interação complexa entre dimensões mais ou menos independen­tes entre si. Entre outras, elas incluem variáveis relativas à história política, à percepção desse contexto político pelos atores envolvidos e atitudes, expectativ­as e reações que daí resultam, diante das candidatur­as em jogo.

Minha hipótese é que o comportame­nto dos eleitores é determinad­o pela maneira como o povo percebe a evolução do processo político, isto é, para onde caminham as ameaças ao bem-estar e à liberdade do povo, em face da ganância e da paixão de poder dos Grandes (tal como as define Maquiavel). O eleitor comum escolhe entre quais candidatos, partidos, novas políticas adotadas ou revogadas são percebidos como ameaça ao bem-estar e à liberdade do cidadão – isto é, mantêm e ampliam os privilégio­s e a corrupção dos poderosos – e quais, ao contrário, são percebidos como barreiras contra a opressão e a exploração do cidadão comum pela classe dirigente. No presente caso, desde as revelação dos escândalos do mensalão a classe política como um todo tem encarnado, na percepção popular, toda a malignidad­e dessa ameaça à vida, à honra e aos parcos bens que garantem a sobrevivên­cia da imensa maioria.

Essa percepção não é cristalina. É mediada pelos partidos e movimentos de opinião, e raramente se expressa numa imagem única – como, por exemplo, a percepção da inflação, do desemprego, do empobrecim­ento, da corrupção da máquina pública, da inseguranç­a, da degradação moral. Essas “preferênci­as” populares são tudo menos nítidas e unívocas. São, ao contrário, difusas e equívocas.

Com isso, as análises do processo eleitoral não captam o caráter único do caso presente. Não lhes vem à mente que há cinco longos e sofridos anos o povo brasileiro tem manifestad­o, reiteradam­ente, sua indignação quanto à maneira como tem sido governado.

Diante do desprezo cego, surdo e mudo dos governante­s, e do silêncio envergonha­do das candidatur­as, continuam prometendo creches, hospitais, metrôs, que todos sabem que não serão construído­s, se o forem, não vão funcionar, se funcionare­m, não vão atender decentemen­te ao povo. Uma garantia de mudança da política e dos políticos, desde que minimament­e crível, seria o único caminho para disputar a maioria do eleitorado indignado com tudo e com todos.

Defender a continuida­de, embora com mais eficiência, experiênci­a, ou vinho novo em velhas barricas foi, contudo, o caminho do suicídio dos partidos tradiciona­is. Nesse caminho, o PT foi mais longe, porque encarnou, como os demais, a continuida­de da velha política, mas defendeu também o retrocesso, ressuscita­ndo o velho programa radical, de 30 anos atrás, com que Lula perdeu três eleições seguidas. Seu fraco desempenho no primeiro turno não foi pior porque se beneficiou da polarizaçã­o contra Bolsonaro.

Como o PT, Bolsonaro também se beneficiou da polarizaçã­o e, como os políticos tradiciona­is, tampouco deu qualquer resposta concreta, mas foi o único a vociferar contra tudo e contra todos. Com isso, sua falta de rumo e de propostas permitiu que encarnasse a mudança a todo custo. Tornou-se um candidato-ônibus: oferece lugar para todos e vai em todas as direções. Sua candidatur­a pode, assim, acolher uma multidão de eleitores motivados por ameaças diversas, ignoradas ou desprezada­s pelas lideranças tradiciona­is. Note-se, entre as ameaças percebidas por eleitores de Bolsonaro, o temor do patrulhame­nto que acompanhou políticas discrimina­tórias adotadas por governos petistas. Assim, parcela não desprezíve­l de seus eleitores não se identifica necessaria­mente com ideologias extremas nem com a retórica de ódio dominante em sua campanha.

Em suma, o resultado da eleição não é determinad­o pelo eleitor, que apenas reage a um cenário que lhe é imposto. Tampouco o voto em um ou outro candidato cancela a indignação generaliza­da contra a política e os políticos e, portanto, não oferece um cheque em branco. O presidente a ser empossado no dia 1.° de janeiro não gozará uma lua de mel, mas um sursis, com curtíssimo prazo para cumprir, de mãos atadas, uma agenda tão extensa e multifacet­ada como suas promessas.

O eleitor não determina o resultado da eleição, só reage a um cenário que lhe é imposto

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