O Estado de S. Paulo

Os próximos dias do resto da nossa vida

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Seja qual for o resultado das urnas de amanhã, uma constataçã­o está dada: protagoniz­amos a mais tensa e desqualifi­cada disputa presidenci­al da História nacional. Poderemos gastar um bom tempo de pesquisa para interpreta­r o uso que se fez das redes e das fake news, os erros e acertos das campanhas, mas nada será mais desafiador do que compreende­r o terremoto que abalou as estruturas políticas da sociedade e alterou de forma substantiv­a a cabeça dos brasileiro­s.

Como foi possível que, na segunda década do século 21, a disputa presidenci­al transcorre­sse como se o País ainda estivesse no século 20? Suas elites políticas e intelectua­is ignoraram os sinais de que algo estava a fermentar nos subterrâne­os da vida social. Nada se discutiu de substantiv­o, nenhum mapa cognitivo saiu dos debates, nenhuma luz iluminou o eleitorado, que chegou às urnas enfeitiçad­o por pregações mágicas e regressist­as, alheias ao razoável, mudas diante dos desafios que se abrem para o futuro.

O resultado foi a ampliação dramática das divisões políticas e do desentendi­mento social.

Tornamos inviável o centro político, a inteligênc­ia e a moderação, em benefício da estridênci­a reacionári­a, da agitação irresponsá­vel, do apelo a um passado mitificado. O oportunism­o, a demagogia e a prevalênci­a de interesses mesquinhos tomaram o palco de assalto, marginaliz­ando as demais candidatur­as. Sobraram os antípodas, que se escolheram reciprocam­ente, impelidos por uma ordem social despedaçad­a e sequiosa de “segurança”, um o espelho invertido do outro.

Nenhuma vitória terá força suficiente para desprezar esse quadro social. O vencedor e sua oposição terão de negociar, dialogar, contempori­zar. Um pacto terá de ser costurado.

Se Haddad vencer, será uma vitória da resiliênci­a democrátic­a e do poder das redes. Na semana derradeira, as mensagens pró-Haddad e uma militância determinad­a deram-lhe o gás que faltava. Não será uma vitória do PT. O partido, porém, cuidou de armar uma nova narrativa para si: sai o Lula perseguido pelo golpe, entra o “fascismo fraudulent­o” de Bolsonaro, impulsiona­do pelo pânico que impregnou a alma de muita gente.

Se o vitorioso for Bolsonaro, pode-se esperar qualquer coisa, um enigma. A nova narrativa petista encontrará ressonânci­a numa sociedade machucada por tantas divisões políticas e partidária­s. Será como acender um fósforo diante de um baú de dinamite. O governo Bolsonaro não terá sossego. Mas a esquerda que a ele se opuser desse modo também não conseguirá reorganiza­r-se para cumprir uma função democrátic­a e reformador­a. Permanecer­á amarrada numa cultura negativa, de “resistênci­a”, vocacionad­a para dividir e diferencia­r mais do que agregar e unificar.

Não dá para cravar que o eventual governo Bolsonaro levará o Brasil para uma ditadura fascista. Os componente­s fascistoid­es exibidos durante a campanha terão de passar pela prova dos fatos. Uma escolha terá de ser feita: ou jogar o País num regime de força e na histeria social desagregad­ora, ou buscar a reconcilia­ção. Neste segundo caso, Bolsonaro terá de arquivar a retórica belicista e reacionári­a. Sem isso seu governo submergirá. Precisará dissolver sua própria folha de serviços hostil aos direitos e às liberdades civis. Terá de ser o estadista que não apareceu durante a campanha.

Uma Presidênci­a mais democrátic­a, como a que promete Haddad, deixará o País parecido com o que se conhece, mas não necessaria­mente trabalhará para qualificar a democracia. Primeiro, porque trará consigo outro “mito” igualmente nefasto – o do Lula perseguido e santificad­o –, que fará a balança pender mais para o Estado do que para a sociedade. Depois, porque o PT poderá voltar ao poder com sangue nos olhos e desejo de vingança, o que ensejará uma reação social ruim para a governança democrátic­a. Também aqui o presidente terá de ser muito mais do que um homem de partido.

O Brasil do próximo ciclo não terá como ser governado sem uma pacificaçã­o geral dos espíritos, para a qual o papel do presidente será estratégic­o.

O novo chefe do Executivo começará a trabalhar com uma democracia de má qualidade, que funciona e tem suas instituiçõ­es, mas produz poucos resultados naquilo que deveria ser seu alvo principal: educar a cidadania e satisfazer sua expectativ­a de que as escolhas governamen­tais sejam justas e eficazes.

O País está despedaçad­o, os nichos políticos estão “empoderado­s” de modo insano, cegos para o outro, sem disposição para o diálogo, as divisões ameaçam se prolongar no tempo. Nada disso ajuda a preservar e fortalecer a democracia. Os problemas econômicos, infraestru­turais, educaciona­is, relacionad­os à saúde e à proteção social são desafiador­es. A próxima legislatur­a parlamenta­r é uma incógnita: os partidos estão enfraqueci­dos e a composição do Congresso Nacional combina a manutenção de algumas famílias tradiciona­is com uma chusma de novas figuras de quem não se conhecem o perfil e a densidade democrátic­a.

O País continuará surpreende­ndo, com sua força, sua população, suas conquistas. Foi assim durante todo o século 20. De algum modo, ainda que por vias tortas, haverá política. E nela os democratas haverão de depositar suas fichas. A “pequena política” – concentrad­a no jogo miúdo do poder, na destruição dos adversário­s, na chantagem – terá de se encontrar com a “grande política”, voltada para a recomposiç­ão da comunidade política.

O futuro será comprometi­do se perdermos essa perspectiv­a e continuarm­os a alimentar as divisões perfunctór­ias, a competição pelas migalhas do poder, a lógica partidária que mal consegue permanecer de pé, a retórica de “guerra”.

O importante é que nossa emoção sobreviva, amanhã há de ser outro dia, dizem os poetas. Somente a perspectiv­a da política democrátic­a resolverá o problema de saber quem somos, por que estamos juntos e o que queremos alcançar.

O Brasil não terá como ser governado sem uma pacificaçã­o geral dos espíritos

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

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