O Estado de S. Paulo

O drama das livrarias

Por futuro saudável, setor busca alternativ­as e regulament­ação

- Maria Fernanda Rodrigues

Por um lado, a dúvida mantinha a esperança viva. Por outro, a falta de transparên­cia e de diálogo minava o pouco da energia que restava para enfrentar a situação. Quando a Livraria Cultura anuncia, na quarta, 24, o pedido de recuperaçã­o judicial, o mercado editorial tem a certeza de que aquele dinheiro todo que a rede devia não vai mais entrar. Pelo menos não tão cedo. E de que a conta de 2018 não vai fechar.

R$ 600 mil para um, mais ou menos para outro. Estima-se que a rede da família Herz deva a editores, bancos e demais credores cerca de R$ 150 milhões.

No comunicado enviado ao mercado, ela diz que “as incertezas do cenário econômico brasileiro” e “a crise do mercado editorial brasileiro” fizeram com que “a Livraria Cultura passasse a enfrentar as dificuldad­es inerentes aos setores onde atua”. Não falam em decisões arriscadas num momento de uma estabilida­de que podia ser provisória, como a abertura de lojas enormes quando categorias como CD e DVD perdiam mercado. Nem da manutenção de unidades deficitári­as, da aquisição da Fnac, mesmo que recebendo por isso, ou da compra da Estante Virtual, quando seus problemas internos eram complicado­s o suficiente e refletiam no dia a dia das editoras.

Algumas deixaram de fornecer para a rede – e para a Saraiva, que também passa por dificuldad­es. Outras suspendera­m a venda por um período. Houve demissões, enxugament­o na produção. Para algumas editoras, Cultura e Saraiva representa­vam algo como 40% do faturament­o.

“O processo de recuperaçã­o judicial da Livraria Cultura representa a cereja de um bolo que azedou chamado ecossistem­a do livro”, diz Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL). Em 2012, havia no País 3.481 livrarias. Em 2014, 3.095. Hoje, a entidade estima 2.500 lojas – o Brasil tem 5.570 cidades. O número preocupa, e a hiperconce­ntração também.

Cultura, com 15 lojas, em recuperaçã­o judicial. Saraiva, hoje, 10 anos depois da compra da Siciliano, quando saltou de 36 para 99 lojas, mais ou menos o número atual, passando por reestrutur­ação, contratand­o consultori­as, fechando unidades, diminuindo espaços, abrindo centro de distribuiç­ão em Minas, renegocian­do prazos de pagamentos com editores e não cumprindo alguns acordos.

Apesar do cenário, fontes do mercado ouvidas pelo Estado não acreditam em falência, como foi o caso da Laselva – ela pediu recuperaçã­o judicial em 2013 e faliu em 2018, deixando credores no prejuízo. Mas num enxugament­o ainda maior. O desafio dos Herz no momento será o de convencer as editoras a continuar vendendo seus livros para as lojas não ficarem desfalcada­s e, assim, ela poder colocar em prática seu plano de recuperaçã­o – ele ainda será detalhado, aprovado pelos órgãos e credores e divulgado – nesse momento, a dívida real será revelada.

“Estamos, inquestion­avelmente e infelizmen­te, vivendo a maior crise da história do mercado livreiro e editorial nacional”, diz Alexandre Martins Fontes. Uma crise que começou a ser sentida mais fortemente pelas editoras em 2014 e que tem alguns fatores, como a diminuição das compras governamen­tais e a queda do consumo de uma forma geral. Alexandre sente seus efeitos mais como editor do que como livreiro.

“Na WMF, reduzimos drasticame­nte os investimen­tos e lançamento­s. Desde 2015, fomos obrigados a demitir um número importante de funcionári­os. Como todos os editores, estamos muito preocupado­s. Temos uma luz no fim do túnel? Dias melhores virão? Muito difícil responder. As editoras que não se adaptarem a essa nova ordem econômica e que não souberem cortar custos enfrentarã­o muitas dificuldad­es”, diz.

Apesar das oscilações do mercado, Ismael Borges, coordenado­r do Bookscan, ferramenta da Nielsen que monitora o varejo de livro, diz que não existe uma crise do consumo de livro. “Os números positivos observados em 2017 e confirmado­s no acumulado de 2018 não se comunicam de forma linear com a realidade dos operadores do mercado. Não é difícil perceber que o problema não se concentra na demanda pelo produto livro. A reorganiza­ção dos operadores do mercado tradiciona­l gera muita ansiedade e pessimismo, mesmo diante dos números positivos da boca do caixa”, diz.

Na livraria de Alexandre, esse cenário se confirma. Desde 2005, quando ele assumiu a administra­ção da loja da Avenida Paulista, ela só cresce. Durante todo esse ano, ele diz, o faturament­o vem aumentando em média 28%. Comparando outubro com o mesmo período do ano passado, o índice salta para 40%. Gestão, uma livraria bonita, um bom café, eventos, livreiros experiente­s, lançamento­s e fundo de catálogo, foco no livro. Tudo isso, diz Alexandre Martins Fontes, ajuda no negócio. “E o vácuo deixado pelas livrarias em crise também explica, em parte, esse cresciment­o.”

Com modelos de negócios diferentes e planos de cresciment­o mais conservado­res, outras livrarias têm conquistad­o espaço. Para além da Amazon, que só vende pela internet e, estima-se, responde por 10% do mercado, editores destacam o trabalho da própria Martins Fontes, da Vila (que anunciou recentemen­te a diminuição de sua loja do Shopping Pátio Higienópol­is), da Travessa (há quem diga que a rede carioca deve abrir uma loja maior do que a do IMS em São Paulo, mas o proprietár­io Rui Campos não confirma), Blooks, Curitiba e Leitura.

Maior rede da região Sul, a Livrarias Curitiba acaba de inaugurar um centro de distribuiç­ão na Capital para ampliar seu braço de atacado, responsáve­l por 35% do grupo. “São Paulo é o mercado em que vamos apostar agora. Aí tem mais universida­des, mais cultura e mais oportunida­de. E também porque a concorrênc­ia tende a reduzir um pouquinho”, diz o diretor Marcos Pedri. A rede, que investe em outros produtos e deve crescer 5% este ano, tem 29 lojas – 5 delas no Estado (Diadema, Taboão da Serra, São José dos Campos e duas em São Paulo). “Entramos pelas beiradas, sem pagar aluguel caro e queremos ter outras lojas.”

Quem também chega com mais força no próximo ano é a mineira Leitura, de Marcus Teles, que não tem medo de fechar lojas deficitári­as. “No segundo ano sem lucro, eu fecho”, diz. Fechou até seu e-commerce há dois anos. “Ele funcionou por 16 anos e não dava tanto lucro. Resolvemos ir por outro caminho, abrir lojas onde não havia livraria. Hoje, somos líderes em 10 estados”, diz. A Leitura começou o ano com 66 livrarias, abriu seis e fechou duas – e vai reativar o e-commerce (mas não para concorrer com empresas de tecnologia que vendem livro, outro grande problema). Aqui, está abrindo unidades nas rodoviária­s do Tietê e Barra Funda e no aeroporto de Congonhas.

As grandes e as pequenas livrarias sofrem. As médias vão encontrand­o um jeito de sobreviver. “Mas precisamos construir um futuro mais saudável”, diz Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livros e diretor da Sextante. Por isso, o empenho do setor em conseguir, ainda neste mandato presidenci­al, a aprovação de uma mudança na Lei do Livro, de 2003. O projeto está na Casa Civil. Se der certo, os descontos vão ficar limitados a 10% no período de um ano após o lançamento – para Amazon, Mercado Livre e para a livraria da esquina, por exemplo. Depois, cada um vende pelo preço que quiser. “Nunca foi tão urgente a aprovação dessa lei. É a garantia de um futuro saudável para todos”, diz Pereira.

O processo da Cultura é a cereja de um bolo que azedou chamado ecossistem­a do livro” Bernardo Gurbanov

ANL

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AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO Cenário. Com a recuperaçã­o judicial da rede da família Herz, editoras vão fechar o ano no vermelho

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