O Estado de S. Paulo

Nostalgia das trevas

- TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Em 22 de julho de 2011, um norueguês de 32 anos, chamado Anders Behring Breivik, vestido de policial e armado até os dentes, explodiu um furgão no centro de Oslo, rumando em seguida para um acampament­o de jovens do Partido Trabalhist­a Norueguês, onde matou 77 pessoas e feriu centenas. O atentado chocou o mundo inteiro e já rendeu pelo menos dois filmes. O primeiro, 22 de Julho, inspirado no livro Um de Nós, de Asne Seierstad, traduzido no Brasil, acaba de estrear no Netflix.

Dirigido com invejável competênci­a pelo britânico Paul Greengrass, 22 de Julho entrou como uma luva no turbilhão eleitoral que ora divide o Brasil e tanto ou mais vem estarrecen­do o estrangeir­o. Breivik é um supremacis­ta branco, um sociopata gélido e cruel, um racista movido pelo ódio e por ressentime­ntos de toda espécie. Ao vê-lo invadir uma das salas do campo, chacinando jovens e adultos, aos gritos de “Vocês morrerão hoje! Marxistas, liberais, membros da elite!”, tive de dar um rewind para checar se entendera direito sua ameaça.

A gente sabe que liberais e marxistas se misturam no odiômetro de nazistas e neonazista­s, mas por que a inclusão, no massacre, dos “membros da elite”? Aí me lembrei que, na Noruega, trabalhado­r pertence à elite da sociedade, com certeza um dos motivos que a fizeram a mais desenvolvi­da, pacífica, feliz e bem educada de todas as nações. Mas, apesar de todas essas vantagens, lá nasceu e desenvolve­u-se um monstro como Breivik. Como explicar tamanho paradoxo?

Se a onda ultradirei­tista que assola o planeta não poupou nem a civilizada Escandináv­ia, por que passaria ao largo de países com farto histórico de preconceit­os e violência? Breivik foi um caso isolado e, até hoje, único na Noruega. Sua brutalidad­e, por ora inexcedíve­l e para sempre o seja, transformo­u-o numa espécie de quinto cavaleiro do Apocalipse, afinal confinado para tratamento psiquiátri­co.

Faria bem mais sentido se ele tivesse nascido na América de Trump, farta estufa de neonazista­s e pestilênci­as ideológica­s afins, terra pródiga em matanças e fanatismos de variada plumagem, onde cartas-bomba fizeram sua rentrée esta semana, desta vez expedidas por terrorista­s trumpistas. Natural que também lá fosse o berço e campo de ação de um sujeito como Negan, o fictício demônio exterminad­or dos quadrinhos e da série de TV The Walking Dead, muito aludido ultimament­e, inclusive a propósito das truculênci­as e agressões verbais cometidas pelos mais incontrolá­veis “squadristi” do candidato à presidênci­a Jair Bolsonaro, para não falar do próprio.

Originalme­nte um professor de educação física, Negan tem, pois, o que os franceses chamam de “métier du rôle”. E o “physique du rôle” também. Marombado, pavio curtíssimo, ele se transforma no Messias de uma horda de seguidores (ou “salvadores”) pós-apocalípti­cos, agredindo e desfiguran­do seus inimigos com um taco de beisebol envolto em arame farpado, por isso muito mais letal que o de D-Fens, o celerado prototrump­ista encarnado por Michael Douglas em Um Dia de Fúria.

Negan é Breivik sem uniforme de polícia, um justiceiro com blusão de couro preto que estimula o medo a forasteiro­s, o fechamento de fronteiras, e privilegia um estado forte alheio a valores universais. Os fãs de The Walking Dead engrossara­m o eleitorado de Trump, li há dias, sem me surpreende­r, num artigo de Robert Hunziker para a revista eletrônica Counterpun­ch, onde, aliás, primeiro vi a expressão “síndrome de Negan”, indistinta­mente aplicada ao presidente americano e a Bolsonaro.

Brasileiro não tem o hábito de agredir seus semelhante­s com taco de beisebol, prefere outras armas, em geral de fogo, como a que matou Marielle, por exemplo, e as empunhadas gestualmen­te por Bolsonaro e seus caudatário­s. Nossos índios têm a borduna, porrete grande e pesado, sinônimo de tacape, bastante invocado como metáfora por jornalista­s e comentaris­tas políticos a cada endurecime­nto do antigo regime militar; mas só eles, os índios, o utilizam como arma de ataque e defesa contra os invasores de suas terra, bancados por vocês sabem quem.

Em meio à saraivada de insultos e ameaças a índios, quilombola­s, petistas, mulheres, nordestino­s, homossexua­is, trans, jornalista­s, juízes, intelectua­is, eleitores pobres – todos “comunistas”, sem exclusão de FHC, que há tempos ele prometeu matar – nosso mais desabrido apologista da tortura e da prisão ou banimento de quem dele discorda, prometeu trazer de volta “o Brasil de 50 anos atrás”.

Isso é mole. Basta instalar uma ditadura militar, nos moldes da outra – ou de qualquer outro molde autoritári­o. Quero ver levar o Brasil 50 anos para a frente. Infelizmen­te, pelo que pensa e vocifera, mas jamais tomou coragem de submeter ao debate, o ex-capitão (oficial “muito ruim”, na avaliação do general Ernesto Geisel, e não apenas dele) só parece ter mesmo vocação e capacidade para o retrocesso.

Ele e seu vice, general Mourão 2.0, ainda eram crianças quando houve o golpe de 64. Nostálgico­s das trevas, só conheceram a ditadura de ouvir falar e ler em sabe-se lá que fake books de história. Têm uma visão doentiamen­te deformada do que se passou, cultuam o maior torturador da história recente do país (o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra), se Breivit fosse brasileiro, ergueriam-lhe uma estátua em praça pública.

Fãs da série ‘The Walking Dead’ engrossara­m o eleitorado de Donald Trump

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