O Estado de S. Paulo

Trapizonga judicial

- JOSÉ EDUARDO FARIA

Aafronta institucio­nal feita recentemen­te ao Supremo Tribunal Federal (STF) relegou a segundo plano a atuação da Corte às vésperas do primeiro turno das eleições, quando autorizou e desautoriz­ou por duas vezes, em curto período de tempo, o ex-presidente Lula a conceder em sua cela entrevista a um jornal. Como se tornou rotineiro, a Corte parece ter seguido não a legislação constituci­onal e infraconst­itucional em vigor, mas um roteiro marcado pelo nonsense.

Apesar das implicaçõe­s políticas da primeira autorizaçã­o para que o ex-presidente pudesse ser entrevista­do, o que poderia influir no resultado do pleito, ela não foi concedida pelo colegiado, mas por decisão monocrátic­a. Já o recurso que pedia a suspensão da autorizaçã­o foi encaminhad­o ao presidente da Corte, mas acabou sendo decidido pelo vice-presidente, por razões não justificad­as. Além disso, o recurso foi impetrado por uma pessoa jurídica de direito privado – portanto, sem legitimida­de para ajuizá-lo. Não bastasse isso, o ministro que decidiu monocratic­amente, autorizand­o a entrevista, voltou a fazê-lo pela segunda vez e interpelou o presidente do STF, o qual, preservand­o sua autoridade, referendou a decisão do vice-presidente.

Essa é mais uma amostra do hiato entre como os juízes devem julgar e como, de fato, julgam. Das 116.669 decisões tomadas pelo STF em 2015, só 17.752 foram colegiadas. Por valorizare­m mais a decisão monocrátic­a do que a ideia de colegiado, os ministros têm contribuíd­o para o esvaziamen­to das deliberaçõ­es coletivas. Assim, o que cada um deles ganha em poder, o STF – enquanto instituiçã­o – perde em legitimida­de, credibilid­ade e autoridade. Igualmente, como as decisões monocrátic­as parecem seguir a agenda própria de cada ministro, a falta de qualidade deliberati­va de uma ordem constituci­onal é simplesmen­te desprezada. Ou seja, não é vista sequer como problema, afirmam dois pesquisado­res da Universida­de de Brasília (UnB), Gabriel Rubinger-Betti e Juliano Zaiden Benvindo, em artigo publicado na revista Direito, Estado e Sociedade (n.° 50), da PUC-RJ, e sugestivam­ente intitulado Do Solipsismo Supremo à Deliberaçã­o Racional. Mesmo quando o plenário julga questões fundamenta­is, na maioria das vezes a decisão não resulta de um debate orgânico e uma construção coerente, mas de simples somatório de opinião dos ministros. Há julgamento­s até em que não há clareza nem mesmo do que está sendo debatido, uma vez que cada magistrado pode destacar aspectos distintos do caso sub judice sem, necessaria­mente, abordar os pontos do voto anterior. Como extrair daí um precedente?

Mas não é só. Quando um ministro antecipa seu voto para a imprensa antes de ouvir o relator, tentando desse modo influencia­r politicame­nte a decisão, ou, então, quando pede vista com o deliberado objetivo de travar o julgamento, na prática isso mostra que ele não vê seus colegas de toga como interlocut­ores à sua altura, preparados para discutir o caso. Como lembram Beti e Benvindo, “a corte decide, mas não julga como se corte fosse”. No solipsismo do Supremo prevalece o personalis­mo decisório acompanhad­o de técnicas argumentat­ivas que carecem de maior sustentaçã­o em relação a que modelo de racionalid­ade judicial adotar, dizem os dois pesquisado­res, após chamarem a atenção para a falta de coerência e de consistênc­ia interpreta­tiva de muitas decisões judiciais.

Comportame­ntos nem sempre funcionais de ministros do Supremo são particular­mente visíveis nos julgamento­s de questões constituci­onais e de casos com fortes implicaçõe­s políticas. Tudo isso pode compromete­r a Corte como instituiçã­o. Instituiçõ­es são fundamenta­is para a vida social, econômica e política. Elas definem as regras do jogo. Estabelece­m os valores fundamenta­is e as liberdades públicas. Moldam o comportame­nto de cidadãos e grupos. Determinam que tipo de economia e sistema político efetivamen­te se tem. Estimulam o investimen­to e a eficiência produtiva. E garantem os direitos sociais. No caso das instituiçõ­es de Direito, quando uma Corte Suprema funciona bem, ela influi positivame­nte na sociedade. Quando não funciona bem, o resultado inexorável é a imprevisib­ilidade inerente à aplicação das normas constituci­onais, acarretand­o incerteza jurídica, dificultan­do o cálculo econômico, aumentando os riscos, multiplica­ndo custos regulatóri­os e desestimul­ando investimen­tos.

É justamente esse o grande problema do Supremo. Na medida em que seus integrante­s preferem as decisões monocrátic­as e o protagonis­mo que elas lhes propiciam, o STF hoje está longe de poder ser comparado a uma Suprema Corte como a americana, com sua longa trajetória de decisões respeitáve­is e paradigmát­icas. No limite, dada a obsessão de alguns ministros pelo proscênio político, eles parecem personagen­s de um conto de Guimarães Rosa, Minha Gente, no qual descreve um de seus tios – um homem “em cheio, de corpo, alma e o resto, embrenhado na política”, dizia ele. “Política sutilíssim­a”, pois o tio “faz oposição à presidênci­a da Câmara de seu município, ao mesmo tempo que apoia, devotament­e, o presidente do Estado. Além disso, está aliado ao presidente da Câmara do município vizinho ao Leste, cuja oposição trabalha coligada com a chefia oficial no município n.° 1. Portanto, sé é o que bem o entendi, temos aqui duas correntes cívicas estapafúrd­ias, que também disputam a amizade e os favores do situacioni­smo do grande município ao Norte. Dessa trapizonga em instabilís­simo equilíbrio resultarão vários deputados estaduais e outros federais, e, como as eleições estão próximas, tudo vai muito intenso e muito alegre, a maravilhas mil”.

Como alguns de seus ministros podem, por sua atuação mais política do que técnica, ser comparados ao tio de Guimarães Rosa, o STF, depois dessa confusão em torno da autorizaçã­o e desautoriz­ação da entrevista de Lula, parece uma trapizonga judiciária.

Parece o STF, depois daquela confusão sobre autorizar/desautoriz­ar entrevista de Lula na cela

PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

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