O Estado de S. Paulo

A nova direita

- DENIS LERRER ROSENFIELD PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@TERRA.COM.BR

Oquadro eleitoral mudou a face do País. Novos parlamenta­res, novos governante­s. Os padrões que vinham orientando a conduta dos políticos sofreu uma brusca transforma­ção, desde a importânci­a da televisão, que perdeu a sua força em detrimento das redes sociais, até a afirmação do antipetism­o como ideia transforma­dora. A ideologia de esquerda perde a sua aderência, abrindo espaço para a emergência de novas forças.

Até estas últimas eleições tínhamos um critério definido, articulado em torno da oposição PT-PSDB. O esquema vigente estruturav­a-se a partir de uma alternativ­a entre uma esquerda social-democrata e uma que detestava essa denominaçã­o, fazendo o jogo da democracia, apesar de não reconhecer o seu valor universal.

Os valores da esquerda funcionava­m como uma espécie de terreno comum, balizando os termos da disputa. Segundo as necessidad­es eleitorais, os tucanos faziam uma leve inflexão à direita, para capturar os seus votos, embora não se reconheces­sem nesse movimento. Os petistas, por sua vez, saíam de sua posição de esquerda ou de extrema esquerda rumo ao centro para não afugentar cidadãos comprometi­dos com a democracia e os princípios do Estado de Direito e de uma economia de mercado.

Tal forma de enfrentame­nto terminou sendo muito confortáve­l para os dois contendore­s, que em seus melhores momentos de relacionam­ento se considerav­am irmãos de uma mesma ideologia social-democrata, embora um deles não se reconheces­se nesse espelhamen­to.

À direita não lhe sobrou nenhum espaço. O PSDB considerav­a-a um mero lote de votos que nele desaguaria normalment­e, uma vez que esse setor da população não votaria no PT. Nos poucos momentos em que a sociedade se pôde manifestar em função propriamen­te de valores foi no referendo sobre o Estatuto do Desarmamen­to, em que a maioria da Nação votou pelo direito à legítima defesa.

O voto popular foi posteriorm­ente desconside­rado por meio de atos administra­tivos, como se a vontade da maioria não devesse ser respeitada. Não é casual que Jair Bolsonaro tenha partido precisamen­te da defesa desse valor ancorado no direito de proteção da própria vida, tendo visto aí uma brecha que terminou se mostrando uma grande avenida.

Acontece, porém, que a sociedade passou a não mais se reconhecer nesse jogo da esquerda. Viu-se não representa­da. Os tucanos desaprende­ram de fazer oposição, oscilando em suas posições e não sabendo fazer o enfrentame­nto com o PT. Pior ainda, muitos de seus líderes terminaram comprometi­dos com a corrupção, tirando desse partido o que era seu traço distintivo.

O PT, por sua vez, abandonou qualquer disfarce democrátic­o e partiu para o aparelhame­nto ideológico e partidário do Estado, tratando-o como se fosse uma espécie de coisa sua, a ser negociada com empresário­s que se locupletav­am num capitalism­o de compadrio. Para as massas de trabalhado­res e desemprega­dos sobraram as migalhas desse enriquecim­ento ilícito.

Agora, com Jair Bolsonaro e, no primeiro turno, com João Amoedo, para não falar dos novos deputados e senadores, não apenas saímos da oposição estéril entre esquerda e direita, como a direita passou a se apresentar em sua diversidad­e. O PT ainda procura, no desespero, caracteriz­á-la como fascista, pois nada mais sabe fazer do que considerar os seus adversário­s como inimigos que deveriam ser aniquilado­s: o “nós” contra “eles”. O partido nunca soube conviver com o outro, apenas procura sempre consolidar a sua própria hegemonia. Nem semelhante­s consegue aceitar. Ciro Gomes e Marina Silva que o digam! Foram, em diferentes momentos, simplesmen­te descartado­s e desconside­rados.

A nova direita apresenta-se agora em duas correntes. Tratase dos conservado­res e dos liberais, em sua significaç­ão inglesa, pois na vertente americana os liberais são de esquerda, na acepção local da social-democracia. Uma, representa­da por Jair Bolsonaro, tem sua ideia reitora em posições conservado­ras, outra por João Amoedo, que expressa posições liberais.

A primeira está, principalm­ente, ancorada na questão dos costumes e no direito à legítima defesa. Trata-se de valores morais que deveriam, segundo essa formulação, fundamenta­r as posições públicas, dentre as quais a luta contra o aborto, a defesa da família, o direito à posse de armas e o combate à ideologia de gênero nas escolas. Daí nasce o apoio maciço dos evangélico­s e de setores católicos a Jair Bolsonaro.

No que toca à questão econômica, as posições são menos claras, embora o candidato tenha passado a levar a sério posições liberais, como a necessidad­e de privatizaç­ão de algumas empresas estatais, a austeridad­e fiscal e a urgência da reforma da Previdênci­a, por exemplo. Em todo caso, clara está a defesa da economia de mercado e do Estado Democrátic­o de Direito, o direito à propriedad­e privada, a defesa das seguranças jurídica, física e patrimonia­l e a liberdade de imprensa e de expressão. Aqui, posições conservado­ras recortam perfeitame­nte as liberais.

A segunda, a liberal, parte enfaticame­nte da defesa da economia de mercado, insistindo na redução substancia­l do peso do Estado, apregoando um programa rápido e abrangente de privatizaç­ões. No que tange aos costumes, diferencia-se dos conservado­res por defender outros valores, como a liberaliza­ção do aborto e das drogas e a defesa das minorias. Ou seja, a noção de liberdade seria entendida de um modo mais amplo, vindo a significar um distanciam­ento dos princípios conservado­res.

Os próximos anos certamente serão a ocasião de desenvolvi­mento e de contraposi­ção entre essas posições à direita, vindo a ser propriamen­te protagonis­tas da luta política, e não mais meras coadjuvant­es de posições de esquerda, que as instrument­alizava. Caberá, isso sim, à esquerda reinventar-se, abandonand­o, no caso do PT, seus delírios chavistas e antidemocr­áticos.

A ideologia de esquerda está perdendo espaço para a emergência de novas forças políticas

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