O Estado de S. Paulo

Terror em casa

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Oque têm em comum estes dois homens? Um é autor do maior ataque à comunidade judaica nos Estados Unidos e matou 11 pessoas numa sinagoga. O outro tentou, enviando bombas caseiras, assassinar dois ex-presidente­s, uma primeira dama, uma ex-secretária de Estado e ex-primeira dama, um ex-vice-presidente, duas deputadas, o exdiretor da CIA, o ex-diretor de Inteligênc­ia Nacional e um ator.

Ambos são americanos, viviam no submundo do ódio digital, mas sem se esconder. Não disfarçava­m seu desejo de matar. Cesar Sayoc fabricou bombas na própria van onde morava e que era coberta de homenagens ao atual presidente, além de imagens de seus inimigos, entre jornalista­s e um cineasta. Sayoc fazia biscates e circulou com a van durante mais de um ano exibindo o rosto de Hillary Clinton coberto com um alvo de tiro. Robert Bowers, o nacionalis­ta branco e autor do massacre na sinagoga, ameaçava abertament­e grupos judaicos online. Escolheu a congregaçã­o por seu trabalho de caridade com refugiados.

Não é difícil imaginar que, se um dos dois homens se chamasse Muhammad e frequentas­se uma mesquita, já estaria no radar da inteligênc­ia contraterr­orista. Assim como não haveria a versão conhecida do terror do Estado Islâmico sem ferramenta­s digitais, o terrorismo doméstico nos Estados Unidos foi imensament­e potenciali­zado online.

As contas de rede social de Sayoc e Bowers foram canceladas, mas só depois do massacre consumado e do massacre frustrado. Como venho repetindo aqui, não dá para aplicar a camisa de força “fake news” para toda a mídia e a própria palavra mídia é genérica demais para abarcar como se consome informação.

A professora Kate Starbird, da Washington University, vem estudando o ecossistem­a de mídia alternativ­a que atrai figuras como Sayoc e Bowers. Não é um submundo exclusivo de direita, é alimentado por conspiraçõ­es e tem se beneficiad­o do despreparo da mídia mainstream para se distinguir dele. Em seus estudos, Starbird nota como a máquina de desinforma­ção operada pela Rússia se serve deste mesmo mundo de realidade alternativ­a para amplificar as mensagens e aumentar a polarizaçã­o. Mas, ela diz, o que mais preocupa foi detectar ideias antes considerad­as marginais entrando no discurso de elites políticas pela pura expediênci­a de adquirir ou manter o poder.

Cada recipiente das bombas toscas de Cesar Sayoc foi atacado pelo presidente nos comícios e em tuítes. Robert Bowers estava convencido de que o espantalho judeu favorito da direita conspirató­ria, o bilionário liberal George Soros, financia a caravana de refugiados que percorre o México, algo que o presidente mencionou em comício, fazendo um gesto que sugere distribuiç­ão de dinheiro. A palavra ‘globalista’ passou a ser eufemismo para judeu, aquele que despreza fronteiras nacionais. E a palavra ‘nacionalis­ta’ se tornou semanticam­ente acorrentad­a ao nacionalis­mo branco, uma ideologia cujo inimigo número um é o judeu, não o negro.

Em comício, na semana passada, o presidente reconheceu que tinha sido desaconsel­hado a usar os termos. Mesmo assim, se proclamou um nacionalis­ta, para urros da plateia. Depois da prisão de Sayoc, culpou a imprensa pela linguagem polarizado­ra. Depois do massacre na sinagoga, sem demonstrar qualquer empatia, culpou a falta de guardas armados. O atirador portava uma arma semiautomá­tica usada por exércitos e conseguiu ferir dois membros da ultra-armada SWAT.

Instigação à violência produz vítimas reais quando radicais se sentem fortalecid­os para atuar suas fantasias de vingança. Vivemos um momento em que líderes improvisad­os parecem esquecer que governam toda a população, não apenas os que votam neles. Palavras de presidente­s têm peso.

Instigação à violência produz vítimas quando radicais realizam fantasias de vingança

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