O Estado de S. Paulo

Martírio, por Solanas

Cineasta que preside comitê do Senado argentino investe contra o agronegóci­o em ‘Viaje a los Pueblos...”

- Luiz Carlos Merten

Fernando Solanas, o maestro do cinema argentino, está de volta à Mostra. Encontrou o País muito pior que há dois anos. “Mas o que se passou? Achei que o Brasil poderia ter resistido aess adireitiza­ção do mundo .” Solana sé umar aridade. Nãoé só umart ista, um cineasta. É também político. Já foicand ida toà Presidênci­a da Argentina, preside o comitê de Meio Ambiente do Senado da nação. Por isso mesmo, não pode ser ignorado. “Não me deu capa, essa imprensa burguesa.” Viaje a Los Pueblos Fumigados – o longa que ele apresenta na Mostra – foi ovacionado em Berlim e recebeu elogios praticamen­te unânimes da imprensa mundial. “Me puseram em cantos de página, o que eu mostro não interessa a muita gente.”

Agroétech,a groé pop. Você liga a TV – no Brasil – e encontra a propaganda direto. O longa de Solanas acrescenta – agro é morte. “É um filme extraordin­ário, que chega ao coração”, segundo a definição do diretor da Berlinale, Dieter Kosslick. E Hollywood Reporter, a bíblia do showbiz – “Solanas oferece um grito do coração contra os pesticidas e outros métodos daninhos de cultivo da terra. É um filme necessário.” Mas não muito palatável, o maestro reconhece. “Não tenho feito filmes que o espectador possa ver no sábado à noite, ‘con su pareja’, com seu amor. Faço filmes para a segunda-feira, para serem diluídos durante a semana.”

Não espere de Solanas uma palavra de apoio ao presidente argentino Mauricio Macri, um dos arautos do neoliberal­ismo econômico no continente. “Elegeuse prometendo resolver os problemas da Argentina. Dizia possuir a melhor equipe econômica, mas são problemas macro, endêmicos. Ninguém os resolveria em apenas quatro anos. Piorou. Estamos numa crise brutal. A Argentina está em recessão, com o maiores juros do mundo. A saúde pública está sucateada e um acordo como FMI aumentou a austeridad­e. Eé um país potencialm­ente muito rico, como o Brasil. Virou esse horror. Buenos Aires se orgulhava de não termos a pobreza estampada nas ruas. Agora está lá, e ninguém mais liga. É uma tragédia.”

Solanas codirigiu com Octavio Getino o clássico militante La Hora de Los Hornos, nos anos 1960. Fez obras de ficção, foi premiado em Cannes com Tangos, o Exílio de Gardel. Em 2004, com Memoria del Saqueo, iniciou uma série de ‘documental­es’ sobre a crise argentina. Seguiramse La Dignidad de Los Nadie, Argentina Latente, La Próxima Estación, Oro Impuro, Oro Negro, La Guerra del Fracking e, agora, Viaje a Los Pueblos Fumigados. Não fala só o cineasta, mas o político, o senador que milita pelo meio ambiente no Senado do país vizinho.

“Houve uma revolução tecnológic­a aparenteme­nte benéfica. As máquinas ajudaram a racionaliz­ar o cultivo e surgiram esses produtos químicos que alteram a composição da flora e da fauna, com o objetivo de evitar que doenças, insetos ou plantas daninhas prejudique­m as plantações. Parece ótimo, mas o problema são as consequênc­ias, os efeitos correlatos e prejudicia­is. O veneno está no alimento que consumimos, A fumigação espalha-se no ar e atinge comunidade­s inteiras. O câncer prolifera, a terra não consegue absorver essa quantidade de agrotóxico­s. Não absorve nem a água. Temos tido inundações catastrófi­cas na Argentina.” Alguns momentos – muitos – de Viaje poderiam estar num filme de Vincent Carelli, em Martírio, por exemplo.

“A soja virou hoje o principal produto de exportação da Argentina. Toda a economia do país depende dela. E a soja é transgênic­a. As sementes são modificada­s em laboratóri­o, que as vendem (junto) com o produto químico adequado. Cada vez mais essas sementes transgênic­as são produzidas para território­s inóspitos. Desertos, florestas. Tem havido um avanço sobre território­s que, constituci­onalmente, pertenciam aos índios na Argentina. As terras dos índios encurtam cada vez mais. Fauna e flora são destruídas. As populações estão desnutrida­s, sem nenhum tipo de assistênci­a. Crianças índias não vão à escola, nunca viram um médico, são subnutrida­s. É um crime, é genocídio, que, como eu mostro no filme, é cometido com a convivênci­a de todos.”

Todos, quem? “Políticos, empresário­s, juízes, todos unidos em defesa de um sistema que está destruindo, criminosam­ente, o meio ambiente, mas com o qual são coniventes porque a economia e o funcioname­nto do governo, do país, dependem disso. Só pensam nos lucros a curto prazo, não têm compromiss­o com o amanhã.” Dito assim, o futuro que se desenha para a humanidade é apocalípti­co. Mad Max, sem Mel Gibson para nos salvar, desenha-se cada vez mais no horizonte. Solanas ri da comparação, mas diz que há esperança, sim. O próprio filme desenha um modelo alternativ­o, a agricultur­a orgânica. “É uma forma de resistênci­a que, na Europa e nos EUA, avança cada vez mais. Em nossos países, parece uma coisa meio hippie, mas na América, a própria Justiça tem aplicado multas milionária­s aos grandes conglomera­dos. O filme cumpre seu papel. Na Argentina, temos vendido milhares de DVDs para escolas, sindicatos. Não filmo para ganhar dinheiro, mas para cumprir um papel social. Filmo nas minhas férias no Senado, monto, como posso, no restante do ano. Fala-se mal dos políticos, na Argentina, mas é um trabalho duro, para quem ainda acredita em comprometi­mento.” E ele revela: “Estou louco para voltar à liberdade da ficção. Estou escrevendo um roteiro. O tema será de novo a crise argentina, mas com outro viés.”

Políticos, empresário­s e juízes estão todos unidos na Argentina em defesa de um sistema que está destruindo, criminosam­ente, o meio ambiente”

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CINESUR Devastação. Os efeitos nocivos do agronegóci­o alijam os índios e os destituem de terras garantidas por lei
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CLAUDIO PEDROSO/AGÊNCIAFOT­O O diretor. Em São Paulo, em conversa com o público: ‘Não é obra para divertir no sábado à noite’

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