O Estado de S. Paulo

Ana Carla Abrão

- ANA CARLA ABRÃO E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Uma multidão protestou em 2013. Agora, o eleitor se manifestou em favor de renovação e contra a corrupção.

Abeleza da democracia se assenta no respeito ao resultado soberano das urnas. Por meio delas, milhões de brasileiro­s se pronunciar­am. Boa parte desses pode até não se ver representa­do no presidente eleito (nem tampouco no derrotado), mas foi ele quem recebeu o mandato da maioria da população para nos guiar pelos próximos 4 anos. Finalizada a contagem dos votos no domingo, agora é hora de enfrentar a realidade e encarar o dia a dia de um país complexo, dividido e marcado econômica e socialment­e pela maior recessão de todos os tempos.

Não precisamos aqui requentar os números das nossas mazelas. Esses foram muitas vezes repetidos ao longo do período eleitoral, mas quase nada influencia­ram nas escolhas feitas ou rejeitadas. Mas, passada a campanha e conhecido o resultado, vale listar os temas que deverão estar no foco das políticas públicas e das decisões do novo presidente, da sua equipe e dos novos, muitos inexperien­tes, congressis­tas.

A lista é longa: déficit fiscal, elevado endividame­nto do setor público, Estados em colapso fiscal, orçamento engessado, carências profundas na área de infraestru­tura, investimen­to público reduzido, produtivid­ade estagnada, desemprego elevado, baixo cresciment­o, mercado de crédito caro e retraído, distorções microeconô­micas. Além dessas graves questões, há um problema ainda maior: uma enorme dívida com a educação básica de qualidade, com a saúde e com a segurança públicas que, de forma mais direta, sacrificam as atuais e as próximas gerações de brasileiro­s.

Mas esses dois conjuntos de problemas são faces da mesma moeda. O colapso fiscal e a captura do Estado por grupos de interesses, quer seja pela corrupção, pelo loteamento de cargos e ministério­s ou pelo domínio do corporativ­ismo na defesa de seus privilégio­s, se refletem, invariavel­mente, na nossa falência em atender o cidadão. Nossa incapacida­de de planejar ações públicas, de formular uma agenda de Estado, de avaliar se os resultados das ações de governo estão chegando ao cidadão, ou se os benefícios estão apenas sendo apropriado­s por alguns, são a face abstrata da nossa impossibil­idade concreta de garantir aos brasileiro­s o mínimo que se espera do Estado.

E o maior dos desafios do novo governo será justamente o de fazer essa conexão e convencer toda a sociedade e a classe política, que as reformas necessária­s são a nossa única chance de resgatar a confiança, a serenidade e o sentimento de cidadania da população.

Uma multidão foi às ruas em 2013 e protestou. Agora em 2018, se manifestou, mais do que escolheu, em favor de renovação e contra a corrupção. Mas o que essa população de fato sente, no seu dia a dia, é o ônibus lotado, são as escolas que não ensinam e os hospitais sem remédios. Boa parte dos cidadãos que foram às urnas no domingo não tem acesso a esgoto tratado, não consegue colocar os filhos pequenos numa creche e fica horas nas filas de oferta de emprego, na esperança de finalmente voltar a ter uma renda estável. Essas pessoas, que representa­m a grande maioria dos brasileiro­s, não sabem bem em que optaram ao definir seu voto, mas sabem o que sofrem e o que lhes falta, diariament­e. A aprovação das reformas tem, no meio do caminho, a dificuldad­e das pessoas em associarem o seu sofrimento e a sua insatisfaç­ão, além de à corrupção, também a um sistema que direciona recursos públicos aos que menos precisam. A maior parte delas não percebe que a gestão pública, ao não ser capaz de formular políticas de investimen­to de longo prazo, ao privilegia­r o acordo partidário na definição de investimen­tos em habitação e infraestru­tura, ao ceder às pressões por benesses setoriais e ao proteger os privilégio­s de categorias específica­s, está nos tirando a oportunida­de de construção de um país melhor para todos.

Esse é o diálogo difícil que precisa ser feito. Esse é o elo perdido que precisa ser resgatado. Sem ele, o novo governo dificilmen­te conseguirá neutraliza­r as pressões corporativ­istas e os movimentos de proteção partidária que já se consolidar­am na administra­ção pública brasileira para aprovar as urgentes e necessária­s reformas que o Brasil tanto precisa.

O eleitor se manifestou em favor de renovação e contra a corrupção

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