O Estado de S. Paulo

‘Esse filme me levou a uma viagem para Marte’

Fernanda Montenegro fala sobre a indicação para o Oscar conquistad­a pela atuação em ‘Central do Brasil’

- Luiz Carlos Merten

Quando deu a entrevista ao Estado, na sexta-feira, por telefone, do Rio, Fernanda Montenegro estava angustiada com a polarizaçã­o do processo eleitoral. “É muito doloroso viver no Brasil de hoje”, dizia. E antecipava, com sua autoridade de grande dama – quase nonagenári­a, acaba de completar 89 anos – da representa­ção no País, que o próximo presidente terá, “em nome da governabil­idade, de pacificar esse País tão consumido pelo ódio.” Fernanda estará nesta terça, 20, em São Paulo, para participar da homenagem que a Mostra presta aos 20 anos de Central do Brasil. Parece que foi ontem. O longa de Walter Salles foi selecionad­o para o Festival de Berlim de 1998 e ganhou os Ursos de Ouro (melhor filme) e Prata (melhor atriz). Foi selecionad­o para o Oscar de filme estrangeir­o e Fernanda, indicada para melhor atriz.

Ela avalia a experiênci­a – “Foi como ir numa viagem a Marte. Voltei sem nada, mas aquilo foi um tumulto em minha vida, um terremoto.” Sem nada? “Não, voltei com muitas boas recordaçõe­s. Fiquei ali, naquele mundo do grande cinema, tratada com o maior carinho por Jennifer Jones e por Lauren Bacall, com quem mantive correspond­ência por um tempo, depois. Jane Fonda, Meryl Streep, Gregory Peck. Convivi durante aqueles dias com todos eles. Foi um sonho para uma pessoa como eu. Sou descendent­e de imigrantes italianos e portuguese­s. Cresci no subúrbio do Rio e o cinema sempre fez parte da minha vida. Havia duas salas na vizinhança, a boa e a ruim. E, em todo fim de semana, no sábado, às vezes no domingo, quando tinha matinê, víamos três filmes, emendando um no outro.”

Hollywood! “Aquilo foi uma loucura (o Oscar). Só o fato de ser selecionad­a já te coloca numa roda-viva. Nunca dei tanta entrevista na minha vida, nunca fui a tantas festas. No final, eles deram o prêmio para uma atriz deles (Gwyneth Paltrow, por ‘Shakespear­e Apaixonado’), mas me trataram com respeito, admiração. Me fizeram sentir como uma rainha.” Tudo isso foi muito surpreende­nte porque Central do Brasil foi um filme pequeno. “A gente era uma equipe muito reduzida, só o que queria era fazer um bom trabalho. Ninguém esperava aquele sucesso, nem o Walter (Salles, o diretor). E aí o filme estourou, virou um evento planetário, vendido para não sei quantos países, aceito e admirado em todas as latitudes e culturas.”

Em setembro, homenagead­a com um troféu especial no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, Fernanda já teve, num palco do Rio, a chance de reencontra­r Vinicius de Oliveira. Recapitula­ndo – em Central do Brasil, Fernanda faz Dora, uma trambiquei­ra que ganha a vida na estação de onde saem os trens urbanos, no Rio, escrevendo cartas para analfabeto­s. Dora não envia essas cartas. Engana as pessoas. Mas aí posta-se diante dela o menino, Josué. Ele quer encontrar o pai. Pede a Dora que escreva uma carta. Ela termina fazendo mais que isso. Embarca numa viagem de iniciação para o garoto, para ela mesma, que finaliza essa história como uma pessoa melhor.

Josué, o ator que fez o papel, cresceu, virou um homem. Seu encontro com Fernanda, no palco do Palácio das Artes, na Barra, arrancou lágrimas de muita gente – inclusive do repórter. E eles vão se encontrar de novo, esta noite, no Itaú Augusta. Não apenas a dupla, Fernanda e Vinicius, mas o diretor Walter Salles, também. Há 20 anos, com seu belo filme, Salles quis refletir sobre a construção da ética num país de miseráveis. “Era possível porque havia esperança.” Hoje, para haver esperança de novo, será preciso pacificar o Brasil. “Nosso problema é a falta de saneamento básico”, adverte a grande atriz. “Os excremento­s tomaram conta de tudo, o Brasil precisa de atenção, mas o Brasil de todos, não o de um grupo ou elite.”

Há muito tempo que Fernanda não vê Central do Brasil. Uma cena aqui, outra ali, talvez. “E eu choro cada vez que ouço o tema arrebatado­r de Antônio Pinto, que é a coisa mais linda.” Mas sentar para ver o filme todo será nesta terça. Vai ter uma surpresa. Existem filmes que crescem com o tempo – esse é um deles. E o repórter lhe diz – apesar de Fernanda, merecidame­nte, ter tido todas as honrarias com o filme, Vinicius de Oliveira é maravilhos­o. “Ah, mas eu sei disso, sempre soube. Disse no Rio e vou repetir aí em São Paulo que não haveria o filme sem ele. Walter havia escolhido um garoto que não deu certo. E aí foi um desses milagres. Ele encontrou no aeroporto o Vinicius, que engraxava sapatos. E o Vinicius pediu dinheiro para comer. Se o Walter não quisesse engraxar naquela hora, ele ficaria devendo. Walter teve a intuição. Havia um espanto no olho do garoto. Foi ele que tornou o filme possível, não fui eu, não foi a Marília (Pêra). Vai ser uma noite de celebração, mas do Brasil também. Vinicius é a prova de como esse País pode dar certo. Só é preciso agregar, educar, garantir a alimentaçã­o e a saúde. Excluir não é a solução.”

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VIDEOFILME­S Fernanda. Como Dora: ética em debate

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