O Estado de S. Paulo

Alma gêmea viajante

- ADRIANA MOREIRA

Encontrar sua alma gêmea viajante não é fácil. Não basta amor verdadeiro, amizade de longa data, laços sanguíneos. É preciso ter química, uma capacidade especial que permita sobreviver a um hotel ruim, a uma semana de chuva na praia, a voo atrasado e trânsito pesado. Você não quer constituir família com essa alma gêmea: quer constituir viagem.

Tive sorte, encontrei a minha ainda na adolescênc­ia. Não lembro quantas viagens fizemos juntas, nem quando foi a primeira. Ao longo de quase 25 anos, foram inúmeras idas à praia, bate-voltas diversos, muitos carnavais – até “apadrinham­os” um casamento em Las Vegas. Em outras, não fomos juntas, mas trocamos dicas. Minha primeira ida à Austrália foi quase totalmente planejada em cima das experiênci­as dela, que tinha percorrido toda a costa do país durante o ano que morou por lá. Ela tampouco me acompanhou na Olimpíada do Rio, mas me orgulho de ter despertado nela a vontade de assistir aos Jogos de perto. Fomos em semana diferentes, mas compartilh­amos a alegria da viagem uma da outra.

Viajar sozinha é bom – sou uma grande adepta, aliás. Mas, antes de embarcar, eu perguntava se ela queria ir junto. Ela era a pessoa que colocava a trilha sonora no carro, a que insistia para que tirássemos fotos, a que conseguia ingressos para baladas apenas com cara de pau, simpatia e bom papo (sem nunca mencionar que eu trabalhava em um jornal). Tinha uma facilidade incrível – invejável até – de fazer amizades descomprom­issadas em qualquer lugar, em qualquer idioma, em qualquer ocasião. Juntas, atolamos o carro do irmão dela (desculpe, André). Fizemos rafting em Juquitiba. Vimos o sol nascer num ano-novo em Búzios e lá salvamos o ator Caco Ciocler do papo chato de uma amiga alcoolizad­a (desculpe, Caco). TRANSFORME •••

Faça dos planos realidade e dos sonhos, memórias Num carnaval no Rio, passamos horas caçando um taxista disposto a nos levar de volta a Santa Teresa numa era pré-aplicativo­s. Fizemos toda Riviera de São Lourenço cantar “Se meus joelhos não doessem mais…” (desculpe, afinação).

Com ela, não havia espaço para o mau humor. Admito: da nossa dupla, eu era a implicante. Ela ignorava esse fato (“para de ser chata, vamos lá”, dizia) e me convencia a ir a lugares nos quais eu jamais pisaria por minha conta. Foi assim que fui parar (literalmen­te) em um congestion­amento monstruoso pré-réveillon, em um show de axé no Guarujá e numa conhecida balada na Grande São Paulo cuja fila para entrar (e sair) era quilométri­ca. Sozinha, eu nunca teria enfrentado aquele armagedon sertanejo, mas com ela nada era ordinário. Tudo magicament­e se transforma­va em divertido e memorável, mesmo que fosse a maior roubada da história.

Ter uma alma gêmea viajante não significa necessaria­mente encontrar alguém parecido com você. A minha era muito diferente de mim – às vezes discutíamo­s, queríamos coisas diferentes, mas sempre chegávamos a um consenso. E era isso que nos enriquecia como viajantes.

Vai fazer um ano que perdi esse privilégio. Não apresentei a ela o carnaval de Olinda – “não vai sair de lá, ano que vem eu vou”, ela me disse quando a convidei, no ano passado. Não fomos visitar a amiga dela no Canadá. Não viajamos juntas à Austrália, ao Japão, à costa da Califórnia à la Telma e Louise, como tantas vezes planejamos.

Por outro lado, são as viagens que concretiza­mos que, hoje, me trazem conforto. Meu conselho: se você tem uma alma gêmea viajante, transforme seus planos em viagens, seus sonhos em memórias, possibilid­ades em realidade. É a melhor estratégia para, um dia, aplacar as saudades.

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