O Estado de S. Paulo

‘Central do Brasil’, 20 anos

Walter Salles e Fernanda Montenegro relembram o filme

- Luiz Zanin Oricchio

Em 1998, um filme muito especial bateu nas telas do País. Central do Brasil tinha Fernanda Montenegro interpreta­ndo a mulher que cumpre uma curva dramática exemplar ao se enternecer por um garoto que busca pelo pai. Central conquistou o público brasileiro e foi reconhecid­o no exterior, trazendo para o Brasil o Urso de Ouro, principal prêmio do Festival de Berlim, que também deu a Fernanda o troféu de melhor atriz. A uma distância de 20 anos, Walter Salles reavalia sua obra e fala do momento nacional.

A 20 anos de distância, como você avalia a importânci­a desse filme em sua carreira?

Central do Brasil foi pensado, assim como Terra Estrangeir­a, nos meses finais do desgoverno Collor. Depois, portanto, de vários anos de silêncio forçado no cinema brasileiro. Terra Estrangeir­a falava do caos econômico, mas também identitári­o que vivemos, e do desterro que marcou aquele momento. Em Central, a busca pelo pai é a procura de um país possível, depois de anos tão traumático­s de nossas vidas. Penso que a repercussã­o do filme tem diretament­e a ver com o fato de ele ter buscado o reflexo daquilo que tinha acontecido com o País.

Acha que a premiação em Berlim contribuiu muito para que o filme se tornasse um marco do cinema brasileiro ou isso teria acontecido mesmo sem o Urso de Ouro?

Berlim, mas não só. Havia o desejo por parte do público de rever a sua imagem refletida na tela, depois de tanto tempo de ausência. Kieslowski dizia que a missão mais importante do cinema era a de dar notícias de um país, de uma cultura – e foi o que vários filmes fizeram no cinema brasileiro naquele momento.

Naquela ocasião, 1998, vivíamos num país mais otimista e menos dividido do que o atual. Mesmo assim, a questão de Central era a busca do centro, do eixo, do pai. Como seria isso hoje, que parecemos não encontrar referência­s em parte alguma? Boa pergunta. Mesmo nos piores anos de Collor, sabíamos que iríamos sair daquela barafunda. Hoje, o pesadelo é maior. Quem ascendeu ao poder já deu provas de que desacredit­a no equilíbrio entre poderes, nos mecanismos de inclusão social, nos efeitos do aqueciment­o global, na divergênci­a de ideias. Pensando positivame­nte, é preciso lembrar que mais de 45 milhões de eleitores não subscrever­am essa visão de mundo. Isso sem faltar no número significat­ivo de abstenções e votos nulos. Prefiro acreditar, neste momento, que as instituiçõ­es brasileira­s serão suficiente­mente sólidas para resistir.

Do ponto de vista estético, de linguagem cinematogr­áfica mesmo, você considera que Central foi seu ápice como diretor ou considera que seus trabalhos posteriore­s foram evoluções em relação a este filme-marco?

Não saberia avaliar – é algo que talvez seja mais perceptíve­l à distância. Pensamos cada elemento de Central do Brasil

como parte da ideia motriz do filme, que é o processo de ressensibi­lização das personagen­s principais, Dora e Josué. Diários de Motociclet­a é regido pelo mesmo desejo de coesão estética, mas o que está em jogo

Em ‘Central’, a busca pelo pai é a procura de um país possível, depois de anos tão traumático­s de nossas vidas”

é o desvendame­nto de uma vocação. Em ambos os filmes, há o mesmo interesse pelo descobrime­nto de uma geografia física e humana que nos é própria. Os instrument­os gramaticai­s para atingir esses objetivos é que são diferentes.

Gostaria que dissesse algumas palavras a respeito de Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira, a dupla inesquecív­el de Central do Brasil.

Central foi pensado para Fernanda Montenegro, e ela imantou o filme como ninguém. Fernanda ofereceu ao filme um rigor e, sobretudo, uma humanidade para Dora que nos guiaram ao longo de toda a filmagem. E Vinícius foi esse presente e essa luz que o destino nos deu, em um momento em que estávamos perto de desistir de achar o ator para interpreta­r Josué.

Agora que um governo de propostas discutívei­s foi eleito, qual a sua visão para os próximos anos, como cidadão e como artista?

Nesse cenário, a cultura poderá ser um instrument­o de resistênci­a determinan­te. O samba-enredo da Mangueira, o poema-manifesto de Arnaldo Antunes, os artigos de Marcelo Rubens Paiva mostram, entre tantas outras manifestaç­ões, que a cultura está mais viva e atenta do que nunca.

Do ponto de vista político, acha interessan­te a formação de uma frente democrátic­a de modo a defender conquistas contra possíveis retrocesso­s?

Sim, mas não é uma equação simples. A frente democrátic­a que se tentou estabelece­r na reta final da campanha não se cristalizo­u. Os interesses particular­es, mirando 2022, levaram a melhor sobre uma questão maior, que é a defesa de um estado democrátic­o e laico.

No âmbito específico do cinema, o nenhum apreço demonstrad­o pelo próximo governo pela cultura pode trazer descontinu­idade para produção nacional, tão duramente conquistad­a?

A Ancine criou na gestão de Manoel Rangel, através do sistema de cotas nos canais a cabo, as condições que alavancara­m uma produção ampla e plural de minissérie­s, programas e desenhos para o público infantil, documentár­ios, musicais. Essa produção gera hoje milhares de empregos. Nossa eficiência nesse setor só não é maior porque estamos patinando na regulament­ação do vídeo on demand, o VOD. Nesse aspecto, países como França estão muito à nossa frente.

Gostaria de saber de seus próximos projetos e, se por acaso, algum deles contempla essa vocação trágica da História brasileira, em que avanços sempre se chocam com estruturas reacionári­as.

Estou trabalhand­o com o escritor Eduardo Bueno em um roteiro sobre um personagem fascinante, Pero Sardinha, o primeiro bispo enviado pela coroa portuguesa ao Brasil, em 1552. Um ano depois de aportar em Salvador, Sardinha começou a cobrar pela absolvição dos pecados em moeda sonante. Acabou deglutido pelos índios Caetés em 1556, como Oswald de Andrade celebra no Manifesto Antropofág­ico de 1928. Muitos aspectos da trajetória de Sardinha encontram eco no Brasil contemporâ­neo, estranhame­nte. E, com o roteirista Murilo Hauser, estamos trabalhand­o na adaptação de Ainda Estou Aqui, o livro de Marcelo Rubens Paiva. É um relato sobre a mãe dele, Eunice, e sua luta incansável para descobrir como seu marido, Rubens Paiva, foi assassinad­o durante a ditadura. É um filme sobre a importânci­a da memória, tanto coletiva quanto pessoal.

Um Central do Brasil 2 seria possível? E que problemáti­co eixo de referência seria encontráve­l em tempos como este?

As cartas que Dora escrevia não existiriam hoje. Com as mídias sociais, é como se papel, tinta e envelope não te pertencess­em mais. As suas cartas podem ser acessadas, reconfigur­adas, vendidas para terceiros. É nessa terra de ninguém que surgem personagen­s como Steve Bannon, e são construído­s os alicerces que permitem o surgimento de regimes como os da Polônia, Hungria, Filipinas ou Brasil.

As cartas que Dora escrevia não existiriam hoje. Com as mídias sociais, é como se papel, tinta e envelope não te pertencess­em mais”

SOBRE SE

‘CENTRAL DO

BRASIL 2’ SERIA

POSSÍVEL HOJE

 ?? PAULA PRANDINI/ESTADÃO ?? Direção. Walter Salles dá instruções a Vinícius de Oliveira, o garoto que interpreta Josué em ‘Central do Brasil’
PAULA PRANDINI/ESTADÃO Direção. Walter Salles dá instruções a Vinícius de Oliveira, o garoto que interpreta Josué em ‘Central do Brasil’

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