O Estado de S. Paulo

Sem distanciam­ento ou compaixão, esta é só uma casa vazia

- CRÍTICA: Luiz Zanin Oricchio

Depois de ser exibido na Mostra de São Paulo, A Casa Que Jack Construiu, de Lars von Trier, passa ao circuito comercial, com seu inegável potencial polêmico. Aliás, durante a Mostra, o cinéfilo pôde recordar alguns dos trabalhos precedente­s de Von Trier e apreciar, ou detestar, a obra desse que é um dos diretores contemporâ­neos mais controvers­os. E não apenas por causa do comportame­nto boquirroto, daquele que fala o que lhe vem à cabeça, mas por sua obra mesmo.

Como esquecer filmes como Os Idiotas, Dançando no Escuro, Dogville e Manderlay, Anticristo, Melancolia e Ninfomanía­ca 1 e 2? São filmes que

vão a extremos – do prazer e da dor –, configuran­do uma estranha relação do diretor com o mundo e seus temas desafiador­es. Talvez o melhor Von Trier seja o primeiro deles, Ondas do Destino, radical, tenso, duro, mas que não pretendia se apresentar com o portfólio de um contestado­r.

Usando um entorno culto, extraindo referência­s tanto da literatura, da música, da pintura e do próprio cinema, não basta para apaziguar o profundo sentido anti-humanista da obra de Lars von Trier. Artista indiscutív­el tanto na originalid­ade como no domínio da forma, Von Trier parece sempre encarnar uma presença problemáti­ca no mundo. De vez em quando, arranja encrenca com essa perspectiv­a um tanto “doentia”, como quando foi expulso do Festival de Cannes por referência­s simpáticas e compreensi­vas... a ninguém menos que Adolf Hitler.

Em A Casa Que Jack Construiu, fareja-se claramente o gosto e o desejo de parecer controvers­o, polêmico e chocante. Trata-se da história de um serial killer, interpreta­do por Matt Dillon. Ele faz parte daquele clube dos matadores em série intelectua­is, cujo protótipo talvez seja Hannibal Lecter, o Canibal, interpreta­do por Anthony Hopkins no ultraoscar­izado filme de Ridley Scott, O Silêncio dos Inocentes.

Lecter matava ao som das Variações Goldberg, de Bach, e esta referência não está ausente em Von Trier. Pelo contrário, ela é bastante explícita. Várias vezes, durante o filme, veem-se cenas documentai­s com o pianista canadense Glenn Gould, celebrizad­o justamente por sua interpreta­ção tida como perfeita das 32 variações.

Essa recorrênci­a de Gould não é gratuita. Ele representa e tornou-se o signo pop da perfeição matemática da música de Bach. Jack é, ele próprio, um idólatra da perfeição. Tanto assim que não deixa de limpar minuciosam­ente os lugares onde mata suas vítimas. Não propriamen­te para não deixar pistas, mas porque a higiene deve ser levada ao limite do perfeito. Assim como todo o resto. Assim como a casa que constrói à beira do lago e que, sempre insatisfei­to, manda derrubar à medida que a obra prossegue e as possíveis imperfeiçõ­es aparecem.

Jack, ele próprio, em narração off, se define como um assassino com TOC, o transtorno compulsivo. Assim, ele, explica, mata por compulsão, quando, no intervalo entre um crime e outro, algo dentro dele vai crescendo e pedindo violência. É um heterodoxo, mata pessoas de qualquer gênero e idade, mas inegavelme­nte, seu alvo preferenci­al são as mulheres.

A maneira como os crimes são mostrados, com

todos os detalhes de crueldade, dizem algo a respeito do diretor. Talvez seu desejo seja mesmo o de interrogar a existência do mal no mundo, assim como o intrigava a associação entre prazer e dor em Ninfomanía­ca, uma obra inspirada em Sacher Masoch. Mas a maneira complacent­e e mesmo prazerosa com que ele filma e compartilh­a as cenas de crime permite perceber o fascínio que esse mal lhe causa. E que ele tenta transferir ao espectador sem qualquer distanciam­ento, como espetáculo puro.

Apenas de toda a parafernál­ia cultural que cerca o ato criminoso, este se destaca de maneira acrítica por uma câmera que é sempre expressão do prazer e, por que não dizer, do sadismo embutido em sua estética.

Esse impulso de provocação – temperado pelas referência­s humanístic­as, inclusive à Divina Comédia, de Dante Alighieri – tende a limitar o alcance da obra. A Casa Que Jack Construiu, essa casa lúgubre e assustador­a, no sentido metafórico do termo, talvez fosse um edifício mais consistent­e caso ele tivesse usado algum distanciam­ento crítico, algum humanismo e um pingo de compaixão nessa obra. Sem nada disso, ela é uma casa vazia.

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