O Estado de S. Paulo

Arte da angústia

- Leandro Nunes

Com 30 anos de carreira, Samir Yazbek estreia peça e série com textos inéditos

O pensamento oriental e budista vê nas formas circulares a força e a elegância do universo e seu vazio. No cenário da peça Eterno Retorno, o piso circular de pedra também inspira os reencontro­s que a vida proporcion­a. Na próxima sextafeira, 9, estreia o espetáculo de Samir Yazbek, em comemoraçã­o aos 30 anos de carreira do autor, e com direção de Sergio Ferrara, no Sesc 24 de Maio.

O reencontro entre os amigos também lembra o movimento circular da peça. Foi nos anos 1988 que Ferrara ensaiava no Centro de Pesquisa Teatral, de Antunes Filho, quando cumpriment­ou Yazbek pela primeira vez. “Lembro que eu fazia um ensaio que era correr em círculos. Brinco com ele que já estava antevendo o retorno que ele traz em sua peça.”

A figura que está no centro do debate é a mesma que recebeu tanta atenção das manchetes nesse recente momento eleitoral. Como nunca se viu, o artista ultrapasso­u a cobertura cultural para a dimensão política. Na montagem, a personagem principal da peça, um ator (Luciano Gatti), se prepara para ensaiar um novo espetáculo. Em contato direto com suas memórias, ele tenta equilibrar o presente, sua rotina de artista, com as demandas de uma mãe conservado­ra (Patricia Gasppar) e o mestre idealista (Carlos Palma). “Tento vê-lo como um anti-herói”, conta o autor.

Enquanto a personagem destila o que parece ser o ego caracterís­tico da profissão, o ator começa a enxergar sua vocação no limite da vida social. Sobram ataques: a namorada (Helô Cintra Castilho) critica que o ofício o afastou do pública, quando o objetivo era aproximá-lo. A mãe despeja sua frustração sobre uma profissão incapaz de atrair dinheiro e sucesso de forma permanente e o produtor da peça (Gustavo Haddad) condena a falta de compromiss­o do artista com quem patrocina seu trabalho. “Tentei criar um recorte sobre as angústias do artista”, diz Yazbek. “Algumas figuras, como a mãe, ganharam projeção como uma classe média que valoriza tão pouco o trabalho do artista.”

Para o diretor, a condição existencia­l do artista o coloca em uma luta ainda mais complexa, nos dias de hoje. “Mais que discutir sua persona, a peça quer despertar a humanidade, cheia de defeitos, que todos têm”, diz Ferrara. “Quando a existência se concretiza, em geral, há terror. Ser artista é mais uma maldição que uma bênção. Quando o aspecto humano adentra o universo criativo, vemos o cidadão.”

Assediada por tantas demandas, a personagem também não está a salvo de si mesma, conta o autor. “Hoje não é mais possível dissociar artista de cidadão, ou qualquer outra profissão. No entanto, na arte, um de seus aspectos é alteridade. O olhar para o outro. Deve ser exercício e esforço contínuos de quem se considera artista.”

Yazbek confere os recentes ataques a músicos, atores, cineastas a uma exposição que não diferencia mais o sujeito de seu ofício. “No flanco, acabamos ficando mais expostos. Nesse caso, sempre fica mais fácil para os outros apontarem e criticarem.”

Ao olhar para os 30 anos de carreira, Yazbek conta que sua criação se desenvolve­u “contra a maré” do movimento teatral daquela época. Enquanto o período apontava para uma certa exaustão pelo trabalho dos mestres encenadore­s, nos anos 1970 e 1980, a década de 1990 inaugurari­a no Brasil os processos de criação teatral em conjunto e coletivame­nte. A diferença é que as funções de dramaturgo, diretor, ator deixariam de delimitada­s e exclusivas. A partir de então, um ator poderia sugerir um texto ao dramaturgo que também poderia apontar caminhos para o diretor, e vice-versa. Se esse cenário foi a situação, o trabalho de Yazbek veio em paralelo, ele afirma. “Mesmo nos trabalhos em companhia, todas as funções continuara­m fixas. Embora eu tenha dirigido algumas peças minhas, como O Fingidor, A Folha Cedro, acreditei que poderia prosseguir na minha voz autoral.”

Para os próximos anos, é nisso que ele aposta. “Quero falar sobre o nosso pior. É como enxergar o monstro com os olhos bem abertos.”

Além da estreia de Eterno Retorno, a programaçã­o reserva oficinas de dramaturgi­a e uma série de leituras dramáticas com cinco textos inéditos do dramaturgo.

ETERNO RETORNO Sesc 24 de Maio. R. 24 de Maio, 109. Tel.: 33506300. 6ª, sáb., 21h, dom., 18h. R$ 40 / R$ 20. Estreia 9/11. Até 2/12.

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LENISE PINHEIRO Ofício. Crise do artista e cidadão ganha foco em ‘Eterno Retorno’
 ?? ARNALDO J.G. TORRES ?? 2009. Cícero em ‘A Noite do Barqueiro’, nos seus 30 anos de carreira
ARNALDO J.G. TORRES 2009. Cícero em ‘A Noite do Barqueiro’, nos seus 30 anos de carreira
 ?? FERNANDO STANKUNS ?? 2012. ‘Fogo Fátuo’, com Yazbeck e Hélio Cícero, sobre o mito de Fausto e Mefisto
FERNANDO STANKUNS 2012. ‘Fogo Fátuo’, com Yazbeck e Hélio Cícero, sobre o mito de Fausto e Mefisto
 ?? ARNALDO J.G. TORRES ?? ‘Frank’. Peça retoma conto de terror da escritora Mary Shelley, com Djin Sganzerla
ARNALDO J.G. TORRES ‘Frank’. Peça retoma conto de terror da escritora Mary Shelley, com Djin Sganzerla

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