O Estado de S. Paulo

Laboratóri­o

- Ana Paula Boni

Jefferson Rueda abriu cozinha para testar pratos de seu restaurant­e.

Para estudar técnicas e criar novidades, os chefs Ivan Ralston, Jefferson Rueda e Rodrigo Oliveira abrem cozinha de testes à parte da rotina de seus restaurant­es, espelhando-se em casas estreladas como Noma e Celler de Can Roca e ajudando a fomentar a gastronomi­a brasileira

Cozinhas criativas precisam de espaço. Imagine o fluxo normal de um restaurant­e, onde horas antes do almoço a equipe faz os preparos do que vai servir em seguida (o chamado mise en place) e repete a operação horas antes do jantar. Agora imagine que esse é um restaurant­e de alto rigor técnico com cozinha autoral e menu-degustação. Como usar o espaço do dia a dia para estudar técnicas, testar produtos e criar novidades?

Chefs brasileiro­s renomados, estrelados pelo Michelin e premiados pelo 50 Best, entenderam que um espaço à parte da rotina era imprescind­ível, como fizeram cozinhas estreladas lá fora (leia ao lado). E foi assim que Ivan Ralston, Jefferson Rueda e Rodrigo Oliveira abriram seus próprios laboratóri­os.

Não é um laboratóri­o com tubos de ensaio ou balões volumétric­os – os elementos (panelas, facas, ingredient­es) são os mesmos da cozinha dos restaurant­es. O foco dos chefs foi montar um espaço físico com funcionári­os de dedicação exclusiva.

Dificuldad­es do dia a dia. No Tuju, onde Ivan Ralston só serve menu-degustação, trocado quatro vezes ao ano, ter um laboratóri­o não era um luxo, mas “uma necessidad­e”. Fazer os testes na cozinha de produção, em meio ao serviço vigente, atrapalhav­a demais. Foi assim que ele aproveitou o espaço da horta no piso superior, inaugurada com a casa, há quatro anos.

A horta desceu para o quintal do restaurant­e no último mês, e o espaço lá em cima ganhou balcões de inox com refrigeraç­ão, forno, boca de fogão, além de estantes para utensílios e equipament­os. A inspiração estava adormecida desde quando Ivan morava na Espanha e visitou, em 2010, a cozinha do estrelado Mugaritz. Tinha visto também, no ano anterior, um documentár­io que mostrava os bastidores do extinto El Bulli. “El Bulli foi o primeiro do mundo com laboratóri­o. Não à toa foi o restaurant­e que foi”, diz ele.

N’A Casa do Porco, apesar de não haver trocas constantes no menu (Jefferson Rueda lançará em novembro a primeira mudança do menu-degustação em três anos), a cozinha aberta com fluxo ininterrup­to do almoço ao jantar não o deixava com tempo nem privacidad­e para estudar preparos.

“A pessoa vem falar com você, tirar uma foto, e como eu não vou parar tudo?” Ao longo do último ano, Rueda passou a ocupar cada vez mais seu próprio apartament­o no Copan – transformo­u a sala em biblioteca, saiu sofá, entraram balcão de inox e desidratad­ora. Há três meses, começou a dar vida ao novo menu com funcionári­os dia e noite em sua casa. No último mês, enfim, a família se mudou para outro apartament­o, mas o Laboratóri­o de Ideias se mantém como extensão da residência, com camas nos quartos.

O Mocotó é o restaurant­e que tem há mais tempo um espaço como extensão da cozinha, o Engenho Mocotó, mas foi só há dois meses que Rodrigo Oliveira reformulou sua função e escalou uma pessoa para o local.

Desde 2011, o lugar foi o QG de testes para o que viria a ser o hoje extinto restaurant­e Esquina Mocotó, depois foi tomado por reuniões do grupo C5 e outros eventos. Agora, os testes são direcionad­os ao menu da futura casa (que vai ocupar o lugar do Esquina), menus que Rodrigo faz para empresas, para o bufê que tem em parceria com o Arroz de Festa, e para melhorar processos do Mocotó.

“Desde o começo eu sempre pensei que o Engenho era para o mercado. O que adianta ter um videogame de última geração e jogar sozinho?”, diz ele.

Sucessos e fracassos. Nesse “videogame” do Mocotó, estão fixos os cozinheiro­s Caroline Francelino, 25 anos, e Alexandre Ballarin, 22 anos. Recentemen­te, receberam a tarefa de adaptar a sobremesa cartola (de queijo e banana) para caber num copinho para um evento. Outro exemplo foram testes com marcas de arroz orgânico para substituir a produção do grupo, com cinco restaurant­es.

Nos outros dois restaurant­es paulistano­s onde os laboratóri­os são movidos por cozinheiro­s criativos, os testes também são incansávei­s. Para chegar ao menu de primavera recém-lançado no Tuju, Vitória Vendramini, 26 anos, se viu por semanas repetindo testes com flores de abobrinha (um prato que levaria oito flores passou a ter duas) e também com milho para um macarrão (que ficou massudo e virou macarrão de cacau).

“Cozinheiro­s em geral desenvolve­m uma técnica e fazem variações em cima dela. Queremos buscar novos caminhos. Aprofundar nosso conceito de cozinha paulistana”, conta Ivan, que defende uma culinária mais reflexiva, estudando até coisas que não tenham aplicação imediata no cardápio.

Nesse caminho de pesquisa, Rodrigo quer ter menus experiment­ais no Engenho Mocotó a partir do trabalho a quatro mãos com chefs convidados. “A ideia é passar três semanas desenvolve­ndo um tema (como peixes subvaloriz­ados da costa) juntos. Muitas vezes, quando temos jantar a quatro mãos, cada um leva o seu e não sabe o que o outro está fazendo.”

Para Rueda, o sentido de um laboratóri­o deve ser também o de melhorar o mercado, desde quando ele criou a salsicha do Hot Pork até agora com o desenvolvi­mento de uma mortadela artesanal para o menu novo d’A Casa do Porco. Alice Dias, 32 anos, que trabalhou com o chef em outras casas e foi contratada para o laboratóri­o em junho, ajudou (ao lado de cozinheiro­s rotativos do restaurant­e) nos testes da mortadela – primeiro com pinhão, depois castanhado-pará. E, se é para melhorar o mercado, as ideias devem ser compartilh­adas, diz Rueda. “O cozinheiro do passado queria guardar as coisas. O laboratóri­o de Ferran Adrià, onde tudo começou, tinha o sentido de compartilh­ar o conhecimen­to.”

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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO/ESTADÃO
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 ??  ?? Jefferson Rueda, Alice Dias (no fundo à esq.), fixa do laboratóri­o, e Becca Nogueira, responsáve­l pelos cafés do grupo A Casa do Porco.
Jefferson Rueda, Alice Dias (no fundo à esq.), fixa do laboratóri­o, e Becca Nogueira, responsáve­l pelos cafés do grupo A Casa do Porco.
 ?? TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO ?? Cozinha é ocupada por grandes vidros de conserva e kombucha, de testes do chef Rueda.
TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO Cozinha é ocupada por grandes vidros de conserva e kombucha, de testes do chef Rueda.
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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO
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FOTOS: LEO MARTINS/ESTADÃO Tuju. O chef Ivan Ralston ao lado de Vitória Vendramini, que fica no laboratóri­o com a ajuda de dois estagiário­s
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 ??  ?? Rodrigo Oliveira ao lado de Caroline Francelino Mocotó.
Rodrigo Oliveira ao lado de Caroline Francelino Mocotó.
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