O Estado de S. Paulo

No alto das redes sociais

- MIGUEL REALE JÚNIOR

Na primeira eleição direta depois da ditadura, em 1989, os candidatos dos principais partidos – Ulysses Guimarães, Paulo Maluf, Aureliano Chaves, Leonel Brizola, Mário Covas – naufragara­m. O povo queria o novo. Foram para o segundo turno Collor e Lula. Collor, candidato pelo pequeno PRN, apresentou-se como o caçador de marajás, em luta contra a corrupção do governo Sarney. O populismo prevaleceu sobre a força dos partidos políticos.

De similar com aquela eleição, na deste ano busca-se o novo e há ilusão de que as dificuldad­es serão superadas pela figura mítica do ungido, sem nenhuma avaliação racional, como crença a pairar longe de qualquer motivo objetivo.

O sentimento antissiste­ma e anti-PT, ao simbolizar esse partido o aparelhame­nto do Estado, foi um dos fatores determinan­tes do processo eleitoral deste ano, principalm­ente nos municípios mais populosos e de maior índice de desenvolvi­mento humano (IDHs). Entre os mil municípios com maior IDH, Bolsonaro ganhou em 967; nos mil de menor índice, Haddad venceu em 975.

A população que se sentia mais independen­te da tutela estatal tendeu a votar em favor do novo, ou seja, contra o sistema. Isso repercutiu na eleição de governador­es novéis na política, concorrend­o por partidos sem expressão. Destaque-se o inexperien­te Romeu Zema, na tradiciona­l Minas Gerais, candidato pelo Novo, vencendo o ex-governador Anastasia. Novatos, sem vivência na administra­ção pública, surpreende­ram em Estados importante­s como Rio de Janeiro e Santa Catarina e no Distrito Federal, bem como em Roraima e Rondônia. Ao lado disso, velhas raposas foram derrotadas: Romero Jucá, Eunício Oliveira, Roberto Requião.

Mas esses resultados não decorreram apenas dos sentimento­s de rejeição ao velho e de desejo do novo. Há outro fator essencial para esse processo ter ocorrido e a ser pensado em seus surpreende­ntes efeitos.

Já se sentira a força das redes sociais no processo político por via das quais se destituíra­m governos ditatoriai­s no norte da África. Se no Egito se depusera Mubarak, os movimentos democrátic­os não conseguira­m organizar um governo. A final, fundamenta­listas e militares entraram em cena.

No Brasil, as redes sociais mobilizara­m imensament­e a população em favor do impeachmen­t. Depois, virtualmen­te, reuniram-se milhões na noite de 29 de novembro de 2016, quando se urdia votar no Congresso o projeto de lei de anistia ao caixa 1 e 2. Em reação, viralizou na internet a hashtag #MaiaNovoCu­nha, que se tornou trending topic, conseguind­o-se impedir a vitória da impunidade.

O presidente da Câmara, ao saber da repercussã­o nas redes sociais, suspendeu a sessão por falta de quórum. Temer, no domingo seguinte, convocou, com imprensa presente, Maia e Renan para declarar que não haveria projeto de anistia. Em artigo nesta página, escrevi: “Há uma mudança radical ainda não digerida pela classe política. A democracia representa­tiva deve se adequar ao fato de o povo fiscalizar e cobrar o Congresso pelo Twitter, Facebook, Instagram, Telegram, WhatsApp”.

Agora, foi-se mais adiante: a força das redes sociais se fez presente, e contundent­emente, numa eleição para presidente e governador. É uma nova democracia, sobre a qual restam ainda muitas perguntas.

Se já não tínhamos partidos políticos, substituíd­os por frentes parlamenta­res ou bancadas, com seus líderes processado­s por corrupção, agora, sim, surgiu um golpe fatal, com uma forma de democracia direta pela via virtual.

Os órgãos intermediá­rios fundamenta­is numa democracia representa­tiva não mais exercem algum papel. Bolsonaro ganhou a eleição sem partido, sem tempo de televisão, sem deputados, sem Fundo Partidário, sem governador­es do seu partido, sem programa de governo discutido com a sociedade. Apenas pregou monossilab­icamente alguns princípios conservado­res. Por outro lado, sindicatos, órgãos de classe, entidades associativ­as, igrejas exercem menos influência do que os grupos de WhatsApp, acessados a cada instante.

Cada qual se sente potente ao opinar na rede social. Todos são iguais perante a internet: esse o novo direito fundamenta­l. O excesso de mensagem contrasta com a escassez de reflexão, pois o que importa é ter opinião, sentir-se participan­te.

Como diz o cientista político da Universida­de de Cambridge, David Runciman, em entrevista à revista Época, edição de 29/10, a crise de confiança na democracia atinge o pacote democrátic­o composto por eleições, partidos políticos profission­ais, sindicatos, programas de políticas nacionais e escolha entre direita e esquerda.

Na falha de corpos intermediá­rios a mediar as reivindica­ções, cada qual não busca meios de ser representa­do, apresenta-se diretament­e pelas redes sociais. Como sobreviver­á a democracia sem partidos, cujos resultados brotam da árvore frondosa das redes sociais? Esse é o grande desafio.

No Brasil, a questão é ainda mais angustiant­e: a imensa participaç­ão nas redes sociais e a desmedida expectativ­a de resolução das dificuldad­es, quase que por um passe de mágica, apenas por nos livrarmos do PT, levam ao risco imenso de uma breve desilusão.

Bem ao contrário de solução imediata e fácil, as decisões políticas e técnicas, em vista de nossa realidade complexa e complicada, exigem massa crítica no exercício da reflexão, sabedoria e traquejo políticos, escolha bem pensada de prioridade­s, limites de campos de combate, virtudes por ora não reveladas no front do presidente eleito.

Ao estilo de pessoa do ex-capitão, ora presidente eleito, sugere-se que é preciso, como fazia o sábio dr. Ulysses, ter a paciência de ouvir e ouvir, para só bem mais tarde decidir. Além do respeito à liberdade, é preciso abrir frentes de interlocuç­ão consistent­es com a sociedade, para deixar de ser um presidente solitário no alto das redes sociais.

É preciso abrir frentes de interlocuç­ão com a sociedade, para não ser um presidente solitário

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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