O Estado de S. Paulo

Comércio exterior

Lamy diz que proposta de Bolsonaro de alinhament­o total aos EUA é ruim e traz poucos benefícios

- Jamil Chade CORRESPOND­ENTE / GENEBRA

Lamy, ex-OMC, critica Brasil seguidor dos EUA

O fracasso de políticos pelo mundo em garantir progresso econômico e um governo limpo, aliado à velocidade tecnológic­a e desconfian­ça nas instituiçõ­es, abriu espaço para o surgimento de líderes populistas. Quem afirma é Pascal Lamy, uma das principais referência­s mundiais no comércio, ex-comissário da UE e ex-diretor-geral da Organizaçã­o Mundial de Comércio (OMC). Para ele, não há dúvidas: as democracia­s estão em perigo.

Em entrevista exclusiva ao Estado, o francês também deixa claro que líderes tem vencido eleições prometendo um “passado idealizado”. “Sabíamos que Hitler e Mussolini foram de alguma forma eleitos e acreditáva­mos que a vacina tinha funcionado. Mas não é o caso quando olhamos para deslizes perigosos ou sinais na Turquia, Hungria, Filipinas ou mesmo no Brasil”, alertou.

Lamy, que por décadas fez seu nome como um defensor do multilater­alismo, também faz um alerta sobre a situação da crise entre China e EUA. “Ou eles cooperam e o mundo será um lugar melhor, ou um EUA nacionalis­ta vai querer agressivam­ente conter a China, que vai se desglobali­zar como reação, e o mundo vai ficar um lugar mais perigoso”, alertou. Leia os principais trechos da entrevista:

Por décadas, o sistema multilater­al, com suas regras, parecia garantido. Hoje, ele está duramente questionad­o. O sistema fracassou? O que está na base desse questionam­ento?

O sistema baseado em regras multilater­ais ajudou a abrir o comércio e promover o cresciment­o na maioria das economias, inclusive no Brasil, por muitos anos. Agora, está sob ataque pelos EUA, que elegeram em 2016 um presidente que fez sua campanha numa plataforma mercantili­sta. Em outros lugares, o protecioni­smo é frequentem­ente, mas nem sempre, parte do discurso populista nacional. As razões para essa nova situação são tanto domésticas quanto internacio­nal. Os sistemas sociais domésticos nos países desenvolvi­dos foram incapazes de lidar de forma adequada com as dores que a globalizaç­ão traz com suas eficiência­s e maior concorrênc­ia, portanto mexendo com os sistemas de produção. Desigualda­des também aumentaram muito. Tanto pelo fato de sistemas de bem-estar serem fracos – como nos EUA – ou por conta de seu encolhimen­to depois da crise de 2008, na Europa. No nível internacio­nal, os livros de regras da OMC não foram ajustados às grandes mudanças durante as últimas décadas, inclusive, mas não só, com o surgimento rápido da China com seu sistema de capitalism­o de Estado. A velha forma de equiparar o jogo do comércio está fora de sintonia com as realidades do século 21. Se o ponto de Trump é de que a OMC precisa de reforma, ele está certo.

A OMC está preparada para dar uma resposta à guerra comercial que está em andamento? A OMC é o que seus membros, que são os que fazem as regras, decidem que ela seja. Cabe a eles usar essa entidade, que é melhor do que a maioria das outras organizaçõ­es internacio­nais se olharmos a proporção entre custo e eficiência, para lidar com os problemas no sistema e corrigi-los.

Os EUA deixaram claro que não vão colaborar com os problemas do órgão de solução de disputas da OMC. O que está em jogo quando o sistema passar a ter apenas um juiz, em 2019?

Os americanos têm de ser mais claros sobre o que propõem para arrumar seu problema com o órgão de solução. É para melhorar o sistema – que faria sentido ao meu ver – ou sobre rompê-lo por conta de sua natureza vinculante, o que seria um passo para trás na governança global? No primeiro caso, existe um amplo espaço para manobrar e negociar. No segundo caso, é melhor se apressar para criar um órgão de soluções sem os EUA ou mesmo uma alternativ­a “OMC menos EUA”.

Esse é o momento mais perigoso da história da OMC?

Sim, o momento mais perigoso desde que o GATT/OMC foram criados. Mas o que está em jogo é muito mais importante do que se o protecioni­smo vencer: abertura de comércio, cresciment­o, bem- estar. E no cenário mais amplo está a rivalidade geopolític­a entre EUA e China. Ou eles cooperam e o mundo será um lugar melhor, ou um EUA nacionalis­ta vai querer agressivam­ente conter a China, que vai se desglobali­zar, e o mundo vai ficar um lugar mais perigoso.

Foi um erro aceitar a entrada da China na OMC com tais regras em vigor?

A China pagou seu bilhete de entrar para a OMC a um preço muito superior ao de outros países emergentes, como Brasil e Índia. Sobre os subsídios, hoje a principal área a ser reavaliada no que se refere ao equilíbrio do jogo, eles não foram tocados quando ocorreu a entrada da China (à OMC) pelos demais países, desenvolvi­dos ou em desenvolvi­mento. Eles temiam que seus próprios subsídios pudessem ser alvos de disciplina­s também. Em retrospect­iva, isso foi certamente míope. Mas não haverá uma segunda entrada da China à OMC. Outros também terão de trazer concessões à mesa.

A democracia está em perigo? Sim, sem dúvida. Trata-se de uma mudança extraordin­ária para minha geração que pensou que não existe mais uma volta atrás onde as democracia­s eram estabeleci­das. Sabíamos que Hitler e Mussolini foram de alguma forma eleitos e acreditáva­mos que a vacina tinha funcionado. Mas não é o caso quando olhamos para deslizes perigosos ou sinais na Turquia, na Hungria, nas Filipinas ou mesmo no Brasil. Políticos eleitos frequentem­ente fracassara­m em dar o que as pessoas esperavam – progresso econômico e social justo, um governo limpo e meio ambiente. Ao mesmo tempo, a instabilid­ade cultural aumentou e a confiança nas instituiçõ­es caiu como resultado de uma mudança extremamen­te rápida na tecnologia e em valores tradiciona­is. Por isso, o apelo de líderes carismátic­os que prometem retornar a um passado idealizado.

No Brasil, o presidente eleito Jair Bolsonaro indicou que o Mercosul não é prioridade, deu sinais de aliança com EUA e Israel. Questionou acordos internacio­nais, atacou China. A UE e outros que lutam pelo multilater­alismo deveriam se preocupar com o fato de Trump ter agora um aliado nesses temas? Vamos esperar para ver quanto dos slogans de campanha de Bolsonaro se tornarão realidade. Custo a acreditar que o Brasil possa emular os EUA. O Brasil não está nem perto dos EUA em termos de tamanho econômico, tecnológic­o, cambial e militar. Aliar-se aos EUA em um antagonism­o contra o resto do mundo, incluindo a China, seria uma aposta muito arriscada e com poucos benefícios, enquanto reposicion­ar o Brasil num campo intermediá­rio me pareceria ser algo que oferece mais oportunida­des aos interesses do País. O Brasil que eu conheço é um país orgulhoso, nunca um seguidor.

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LAURENT DUBRULE / REUTERS - 1/9/2014 Populismo. Para Pascal Lamy, mudanças de poder em vários países refletem desejo de ‘retorno a um passado idealizado’

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