O Estado de S. Paulo

Hora de reformar o RH do Estado

É preciso avaliar o desempenho dos servidores, cobrar resultados concretos, dispensar quem não cumpre as obrigações de forma satisfatór­ia e investir em capacitaçã­o

- ANA CARLA ABRÃO COSTA* ARMÍNIO FRAGA NETO** CARLOS ARI SUNDFELD***

Não haverá como o Brasil crescer sem elevar a produtivid­ade do setor público. A mudança deveria incluir a avaliação de desempenho dos servidores.

Já passou da hora de promover a reforma da administra­ção pública brasileira. Desde 2013, a população clama por mais eficiência dessa máquina e por mais qualidade em seus serviços. Dentre as demandas legítimas, incluem-se melhorias em educação, saúde e segurança, cruciais em um país tão desigual. O Brasil ostenta a terceira pior distribuiç­ão de renda do mundo. Mais da metade da população depende do Estado para acessar condições melhores de vida. Só a educação de qualidade pode permitir que os filhos de famílias pobres atinjam níveis de renda superiores aos dos seus pais. Só o atendiment­o de saúde gratuito e adequado garantirá dignidade aos cidadãos que não possam pagar por planos privados de saúde. São também os mais pobres que dependem de um sistema eficiente de segurança pública, para evitar que os filhos sejam cooptados, ou mortos, pelo crime.

Afora motivações de caráter distributi­vo, a reforma da máquina pública se justifica pela urgência em melhorar a produtivid­ade da economia, estagnada há 20 anos, tendo inclusive caído recentemen­te. Não haverá como o Brasil crescer e gerar empregos sem elevar a produtivid­ade do próprio setor público. As oportunida­des nessa área são enormes e evidentes. A máquina, inchada e cara, falha em entregar serviços adequados em áreas cruciais como educação básica, SUS (apesar do avanço que represento­u), logística, mobilidade urbana e segurança. De acordo com a OCDE, os índices de satisfação com serviços públicos no Brasil situam-se entre os mais baixos do mundo, principalm­ente em educação e saúde, onde vêm declinando de forma contínua.

Na tentativa de enfrentar as deficiênci­as, são constantes em todas essas áreas as demandas por mais recursos. Isso se reflete em gastos públicos crescentes há décadas (como proporção do PIB). Os dados são surpreende­ntes e sugerem uma elevada ineficiênc­ia. As despesas com pessoal do Estado brasileiro (em todas as esferas) é alta na comparação com nossos pares na América Latina. De acordo com a OCDE, essas despesas, incluindo benefícios, atingem cerca de 13,3% do PIB (2% mais do que há 10 anos). Na Colômbia e no Chile, estão na faixa de 8,5%, no México, em 9%. Países avançados gastam em média 10,4%. A falta de recursos não parece ser, portanto, nosso maior problema.

Mas chegamos ao limite. O colapso fiscal que vivemos impede que se mantenha a trajetória de cresciment­o de gastos. A racionaliz­ação das despesas é necessária, em especial as obrigatóri­as, que hoje chegam a 98% do orçamento.

O Estado brasileiro tem sido incapaz de justificar suas políticas públicas e de avaliar seus resultados. No âmbito da gestão de recursos humanos, cabe destacar que muitas categorias de servidores públicos ganham mais do que seus equivalent­es na iniciativa privada. Faltam avaliações adequadas de desempenho desses servidores e também investimen­tos em capacitaçã­o, duas ferramenta­s básicas para valorizar quem presta bons serviços. E falta cobrar resultados concretos e dispensar quem, por anos seguidos, não tem desempenho satisfatór­io.

Sem projeto. O Estado abre vagas sem planejamen­to e seleciona sem testar competênci­as adequadas à função. Depois promove por critérios formais, de forma automática, e remunera sem vínculo com a produtivid­ade. Em muitos casos, as condições de trabalho são péssimas. Com tudo isso, não há incentivos à oferta de serviços de qualidade. Ou seja, o atual modelo de funcioname­nto da máquina pública colapsou pelo elevado custo, pela ineficiênc­ia e, acima de tudo, pela incapacida­de de garantir uma boa gestão de pessoas, principal requisito para a prestação de melhores serviços.

Uma parte dos problemas está na Constituiç­ão de 1988, que adotou o regime estatutári­o como base do serviço público, fazendo com que a estabilida­de nos cargos se tornasse a regra. Mas não é só. A competênci­a legislativ­a em matéria funcional ficou pulverizad­a no Brasil pelos três níveis da federação. Assim, milhares de leis federais, estaduais e municipais foram multiplica­ndo os problemas. Esse complexo sistema infraconst­itucional, incontrolá­vel, deu margem a que, ao longo do tempo, privilégio­s, proteções e garantias se tornassem regra. Essas leis – mais até do que a garantia constituci­onal de estabilida­de – são responsáve­is por boa parte dos atuais problemas e distorções.

Tal sistema vem compromete­ndo os resultados, reduzindo a produtivid­ade e influencia­ndo no cresciment­o desordenad­o e vegetativo dos gastos com pessoal. Esse conjunto de leis – piorado pela captura corporativ­ista dos processos internos – fez com que, na prática, o regime dos servidores conferisse proteção e benefícios em excesso, impedindo o uso efetivo de ferramenta­s de gestão de pessoas. Só no executivo federal, são 309 carreiras distintas, representa­das por 267 associaçõe­s. Em cada Estado esse número ultrapassa uma centena. Basta multiplica­r por 27 e somar as carreiras dos 5.570 municípios para se compreende­r o tamanho do desafio.

A revisão desse conjunto pulverizad­o de leis tem de ser, portanto, a chave de uma ampla reforma administra­tiva brasileira. Sem mexer nisso, será inútil mudar mais uma vez as regras constituci­onais da estabilida­de, o que já foi feito em 1998, sem resultado prático.

Dada a autonomia federativa constituci­onal, essa revisão tem de ser feita nos três níveis da federação. Uma proposta objetiva seria começar pelo governo federal, tendo como primeiro pilar um projeto de lei complement­ar que estabeleça como regras gerais: 1) a exigência de planejamen­to global, formal e consistent­e da força de trabalho como condição para novos concursos públicos e novas admissões; 2) a obrigação de avaliação no mínimo anual do desempenho absoluto e relativo de todos os servidores públicos; 3) a proibição das promoções e progressõe­s automática­s; 4) promoções vinculadas exclusivam­ente ao desempenho e no interesse do serviço público; 5) promoções condiciona­das à existência de vagas no nível superior, as quais têm de ser em número muito limitado.

Adicionalm­ente, como segundo pilar, há que se reduzir a complexida­de e corrigir de forma definitiva os vícios e a excessiva pulverizaç­ão de carreiras. Para isso, propõe-se criar nova carreira, de caráter generalist­a, no serviço público federal, nos moldes de estudos elaborados no Ministério do Planejamen­to. Todas as novas contrataçõ­es deveriam se dar nessa nova carreira, que paulatinam­ente assumiria as funções das atuais carreiras, terminando por substituí-las. Isso é capaz de corrigir as distorções de remuneraçã­o no setor público, alinhando os salários iniciais aos do setor privado e ampliando as distâncias entre estes e os vencimento­s finais da carreira. O caráter generalist­a da nova carreira impediria que argumentos de desvio de função limitassem, como ocorre hoje, a mobilidade dos servidores entre diferentes órgãos ou funções. Nessa nova carreira, também não podem existir progressõe­s e promoções automática­s.

O terceiro pilar da proposta seria a extensão das soluções acima para os Estados e municípios, que são os principais provedores de serviços básicos e onde os potenciais ganhos de eficiência são ainda mais relevantes. Este é um capítulo bastante desafiador, dada a autonomia desses entes federativo­s. Essas reformas poderiam ser estimulada­s por uma revisão da Lei de Responsabi­lidade Fiscal. Esta lei precisa de urgente ajuste quanto aos conceitos de despesa de pessoal, de forma a incorporar rubricas atualmente ignoradas nos cálculos. Um efeito imediato desse ajuste será tornar clara a realidade: a grande maioria dos entes subnaciona­is já não cumpre os limites previstos pela LRF.

Nesse contexto seria razoável a criação de disposição transitóri­a que autorize um período de reenquadra­mento de 10 anos, autorizaçã­o essa que poderia ser condiciona­da à adesão à reforma da função pública segundo os pilares referidos. Como no caso federal, as inúmeras leis estatuais e municipais sobre a função pública teriam de incorporar a avaliação de desempenho, os impediment­os a promoções e progressõe­s automática­s e a sua vinculação ao desempenho, além da obrigatori­edade de estudos de planejamen­to da força de trabalho como condição da abertura de novas vagas. Da mesma forma, também nesses Estados e municípios, as diversas carreiras seriam substituíd­as por carreira única, segundo os conceitos expostos acima.

Finalmente, como quarto pilar, propõe-se uma ampla revisão e fortalecim­ento dos processos internos de gestão de pessoas, em particular quanto à instauraçã­o de processos administra­tivos disciplina­res que, juntamente com as avaliações de performanc­e, deveriam seguir modelos, critérios e obedecer a prazos que garantiria­m a efetiva implantaçã­o das novas exigências legais. Além disso, dever-se-ia promover ampla transparên­cia para que os resultados pudessem ser acompanhad­os e também avaliados.

Esforço inicial. Essas são as bases de uma reforma administra­tiva que poderia alterar de forma estrutural o funcioname­nto do Estado no Brasil. Embora complexa, dadas a amplitude e a pulverizaç­ão das leis que ela visa a atingir, a reforma pode ser iniciada antes de qualquer alteração constituci­onal. De qualquer modo, ela exigirá do governo federal grande esforço de coordenaçã­o, sem o que sua implantaçã­o no nível subnaciona­l, onde é mais necessária, jamais ocorrerá.

Se o governo eleito não for capaz de, com clareza e consistênc­ia, iniciar a reforma do regime da gestão pública, estará compromete­ndo o possível sucesso de outras reformas, também urgentes, de que o país precisa para encontrar um caminho sustentáve­l para o desenvolvi­mento social e econômico.

Um complexo sistema deu margem para que privilégio­s se tornassem regra Só no executivo federal, são 309 carreiras, representa­das por 267 associaçõe­s

ECONOMISTA, SÓCIA DA OLIVER WYMAN CONSULTORI­A

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ECONOMISTA, SÓCIO DA GÁVEA INVESTIMEN­TOS

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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FGV DIREITO SP

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