O Estado de S. Paulo

Fernando Henrique

- FERNANDO HENRIQUE CARDOSO SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

A consolidaç­ão de um radicalism­o de centro requer a pavimentaç­ão de alianças no círculo político e na sociedade.

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservado­ra que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarizaçã­o do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilid­ade.

Nas circunstân­cias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualda­de social, como retomará o cresciment­o econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilid­ade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrátic­a, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentaç­ão e na perda de conteúdo programáti­co.

Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilid­ade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituiç­ão. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservaçã­o dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservado­rismo.

A onda conservado­ra concentra-se principalm­ente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidad­e e sua valorizaçã­o, que é constituti­va da democracia, embora se recuse a transforma­r a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferênci­as, sexual ou sobre o que seja, divergente­s do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferênci­a religiosa: há que respeitá-la integralme­nte, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalida­de de um centro progressis­ta não se limita, contudo, aos aspectos comportame­ntais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemen­te com a “nova matriz econômica”?

Sem fundamenta­lismos desnecessá­rios e mesmo contraprod­ucentes, o “centro progressis­ta e radicalmen­te democrátic­o” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.

Sem cair, por outro lado, na apologia do “individual­ismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâ­neas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitári­a. A sociedade civil, em sua pluralidad­e de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.

Num artigo de jornal não cabem demasiadas consideraç­ões sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefiniçõ­es. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializ­ar o radicalism­o de centro?

Comecemos com a autocrític­a. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivo­s, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francament­e, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?

Se for o da adesão oportunist­a ou o da crítica indiscrimi­nada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrátic­o e progressis­ta. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheir­a e não se confunde com inação. A consolidaç­ão de um novo movimento requer desde já a pavimentaç­ão de alianças, não só no círculo político, mas principalm­ente na sociedade, para formar um polo aglutinado­r da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.

Que movimentos e partidos poderão materializ­ar um radicalism­o de centro?

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