O Estado de S. Paulo

Eliane Cantanhêde

- ELIANE CANTANHÊDE E-MAIL: ELIANE.CANTANHEDE@ESTADAO.COM TWITTER: @ECANTANHED­E ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Seria grosseiro tratar Mourão como folclórico. Suas falas são sobre coisas sérias, num País onde vices não são apenas enfeite.

Passou suavemente, quase despercebi­da, a frase do presidente eleito, capitão reformado Jair Bolsonaro, sobre seu vice, general de quatro estrelas da reserva Hamilton Mourão, mas ela diz e projeta muito de um governo que nem começou. “Tenho pouco contato com ele”, disse Bolsonaro, com um ar de pouco caso, deixando uma pulga atrás da orelha de atentos e curiosos.

Mourão tem respeitáve­l carreira no Exército, ocupou postos de destaque dentro e fora do País, inclusive o Comando Militar do Sul, foi bem em entrevista­s às tevês (dizem que até melhor do que o próprio Bolsonaro) e acaba de passar muito bem no teste de inglês ao falar à BBC. Mas é dado a declaraçõe­s polêmicas, às vezes chocantes.

Sua primeira vitória foi ultrapassa­r Janaína Paschoal, Marcos Pontes, Magno Malta, Luiz Philippe Orleans e Bragança na corrida pela vice. Entre professore­s, políticos, astronauta­s e príncipes, Bolsonaro ficou com um general gaúcho que surgiu no cenário político ainda na ativa, ao ser afastado da Secretaria de Economia e Finanças do Exército em 2017, não por coincidênc­ia, após defender intervençã­o militar.

Já candidato, ele produziu as pérolas da eleição, atribuindo as mazelas brasileira­s à “indolência dos índios” e à “malandrage­m dos negros” e confirmand­o suas crenças mais profundas ao orgulhar-se da beleza do neto e do “branqueame­nto da raça”, o que remete ao que há de pior na história da humanidade e é nevrálgico no Brasil. Ainda foi adiante ao chamar as famílias sem homens, comandadas por mães e avós, de “fábricas de desajustad­os”.

Até aí, Bolsonaro e a campanha tratavam Mourão como um boquirroto, que sai falando tudo que passa pela cabeça sem atentar para as consequênc­ias, mas o caldo entornou quando ele se meteu a falar de intenções de governo. Defendeu uma Constituin­te exclusiva, formada por “notáveis” e passando ao largo do Congresso eleito pelo povo, aliás, uma ideia lançada pelo ministro Tarso Genro no governo do PT.

O general também virou estrela das redes sociais ao chamar o 13º salário de “jabuticaba brasileira”, mesmo depois de Bolsonaro alertá-lo duas vezes para ter “cuidado” com o que dizia. As advertênci­as entraram por um ouvido, saíram pelo outro. E, no pior momento da campanha, quando o PT acertou o passo e os bolsonaris­tas não paravam de dar tiro no pé, Bolsonaro deu um freio de arrumação: mandou Mourão e Paulo Guedes calarem a boca. O economista atendeu, o general se deu por desentendi­do.

Inteligent­e e preparado, seria grosseiro e injusto tratar Mourão como apenas folclórico, até porque suas falas não são sobre banalidade­s, mas sobre coisas sérias, num País onde os vices não são apenas enfeite. Na prática, vice está na antessala de assumir a Presidênci­a.

Sarney só entrou na chapa do adversário Tancredo para dividir a base do governo militar e garantir a transição. Itamar virou vice de Collor para dar consistênc­ia política e partidária a uma aventura do PRN. Temer foi resultado de uma aliança PTMDB para dominar o Congresso, apesar de Dilma. Todos viraram presidente­s.

Os demais nem sempre foram reforço, mas dor de cabeça. Aureliano Chaves infernizou (com boas razões) o general Figueiredo, último presidente militar. José Alencar virou arauto contra os juros altos e sonhava ser presidente um dia, mas Lula conquistou-o com lábia e jeitinho. O vice dos sonhos de qualquer um, ou uma, foi Marco Maciel, o pernambuca­no intelectua­l suave e discreto que jamais criou problemas para FHC.

Convenhamo­s, Hamilton Mourão está mais para Aureliano do que para Maciel e pode dar muito trabalho ainda para o presidente Bolsonaro, com quem tem “pouco contato” e, quando tem, parece não dar tanta bola assim.

Inteligent­e, preparado e falante, o vice Mourão ainda vai dar muita dor de cabeça

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