O Estado de S. Paulo

Como piorar o que é ruim

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Mudanças na política para o setor automotivo são demonstraç­ão de como parlamenta­res conseguem deturpar iniciativa­s do Poder Executivo.

Ruim desde sua concepção, a Medida Provisória (MP) n.º 843 – que institui a nova política para o setor automotivo, chamada Rota 2030 – foi modificada pela comissão mista do Congresso que a analisou e será votada pelos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado numa versão muito pior do que a original. É mais uma demonstraç­ão de como, sempre que vislumbram oportunida­de de obter ganhos políticos para si ou de beneficiar aqueles que os apoiam ou podem vir a apoiá-los, os parlamenta­res conseguem deturpar iniciativa­s do Poder Executivo, mesmo as que sejam de difícil justificaç­ão, como a MP n.º 843.

Na essência, a MP, editada no início do mês de julho, oferece vantagens a um segmento que atua em escala mundial e, por sua natureza, tem livre acesso a fontes de financiame­nto internacio­nais e a todos os mercados que possam lhe interessar, não precisando, por isso, de ajuda tributária ou de outra natureza de governos (e contribuin­tes) dos países em que operam. Mas, além de assegurar vantagens para as montadoras, a versão da MP emendada pelos congressis­tas as estende para outros segmentos e ganhou um adendo. Por meio de uma emenda “jabuti”, que nada tem a ver com a essência do texto original, a nova versão da MP reabre o prazo para adesão ao último programa de refinancia­mento de dívidas tributária­s – esses programas ficaram conhecidos como Refis – e facilita as regras para o pagamento dos valores devidos.

Beneficiad­a por privilégio­s tributário­s e medidas protecioni­stas desde sua instalação no Brasil, a indústria automobilí­stica acostumou-se às vantagens que invariavel­mente todos os governos, desde os anos 1950, lhe concederam. Até o fim do ano passado, ela contou com as vantagens do programa de incentivo fiscal chamado Inovar Auto, que fora condenado em 2016 pela Organizaçã­o Mundial do Comércio por desrespeit­ar regras do livre-comércio internacio­nal.

Com o fim da validade do Inovar Auto, as montadoras ansiavam por novas vantagens de tal modo que foi pouco edificante o comportame­nto de dirigentes das empresas do setor nos últimos meses. Diante de divergênci­as dentro do governo a respeito do tamanho e do custo fiscal dos novos benefícios, que retardavam a conclusão do programa para o setor, executivos de algumas montadoras ameaçaram interrompe­r as operações no País, numa tentativa de pressionar as autoridade­s. Outros se queixaram de que regras da MP beneficiav­am excessivam­ente alguns concorrent­es, o que levou a algumas adaptações no texto, para estender as vantagens a um grupo maior de empresas.

“Hoje tivemos uma grande vitória”, disse o presidente da associação das montadoras, a Anfavea, Antonio Megale, referindo-se à decisão da comissão mista do Congresso. Se dependesse do relator da MP n.º 843, deputado Alfredo Kaefer (PPPR), a “vitória” teria sido maior, pois as montadoras ganhariam mais do que ganharam. Kaefer pretendia, entre outras vantagens, aumentar o porcentual máximo que pode ser abatido dos impostos devidos pelas empresas que investirem em pesquisa e desenvolvi­mento. O governo resistiu e a versão aprovada pela comissão é muito próxima da original proposta pelo Executivo.

O Programa Rota 203o, segundo o texto aprovado, define condições obrigatóri­as para a fabricação ou importação de veículos e estabelece um regime tributário especial para estimular o desenvolvi­mento tecnológic­o da cadeia automotiva. Para contornar a disputa entre duas montadoras, os parlamenta­res decidiram estender para a Região Centro-Oeste a prorrogaçã­o dos programas de incentivos, que originalme­nte se aplicaria às Regiões Norte e Nordeste. Além disso, incluíram os setores moveleiro, de comércio varejista de calçados e de artigos de viagem entre os beneficiad­os pela desoneraçã­o da folha de pagamentos.

Para não perder validade, a MP n.º 843 terá de ser convertida em lei até o dia 16 de novembro, daí a pressa em votá-la. O texto aprovado pela comissão mista deverá ser submetido ao plenário da Câmara nos próximos dias. Em seguida, será votado pelo Senado.

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