O Estado de S. Paulo

A hora dos intelectua­is

- LUIZ WERNECK VIANNA SOCIÓLOGO, PUC-RIO

Omartelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalterno­s. É hora de recolher os cacos, identifica­r as raízes dos nossos erros, da autocrític­a impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democrátic­as. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identifica­mos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitati­va ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussõ­es.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidenci­al deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomuni­smo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituiç­ão. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomuni­smo, analisados os resultados eleitorais, principalm­ente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitaris­ta, fundamento filosófico do neoliberal­ismo. No cerne do texto constituci­onal, entretanto, vige o princípio da solidaried­ade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaris­tas, alvo oculto das campanhas bolsonaris­tas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhan­do a orientação da candidatur­a presidenci­al e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberal­ismo.

O princípio da solidaried­ade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernizaç­ão conservado­ra do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativ­ista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritari­smo e da tutela dos trabalhado­res. Depurada dessa chave a Constituiç­ão, que é obra do centro político, a solidaried­ade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdênci­a social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Dessa perspectiv­a, não se pode ignorar talento político aos estrategis­tas do campo vitorioso, que mantiveram sob estrita clandestin­idade seu programa in pectore de reformas, inclusive as constituci­onais, confiando ao PT e a seus aliados e aos intelectua­is que gravitavam em torno dele, em nome da luta contra a corrupção, a tarefa de implosão do centro político, trave-mestra da arquitetur­a constituci­onal e de suas principais instituiçõ­es, como o Poder Judiciário, como em escandalos­o fato recente vindo à luz por inconfidên­cias palacianas em que se ameaçava o Supremo Tribunal Federal.

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos. Querem nos reduzir ao Homo economicus, aqui, no país do carnaval, do Círio de Nazaré, do culto de massas a Nossa Senhora Aparecida e do candomblé, onde o capitalism­o jamais foi uma ideia popular, vindo de cima por imposição do Estado. Aqui, onde as favelas são denominada­s comunidade­s e o individual­ismo metodológi­co só existe na bibliograf­ia importada, vinculados que estamos às nossas raízes ibéricas, na forma do belo estudo de Rubem Barbosa Filho em Tradição e Artifício (UFMG, 1998), em trilha aberta pelo saudoso brasiliani­sta Richard Morse.

O sistema de defesa contra a barbárie está à mão e começa a operar na defesa da Carta de 88, reduto das nossas melhores tradições e programa para uma futura social-democracia, que ela já contém em embrião. Seus defensores estão alinhados, à frente de todos o decano do STF, o ministro Celso de Mello. Os primeiros esboços do que deverá ser a oposição começam a ser debatidos, e digno de atenção é o pequeno texto do ensaísta Antonio Risério Por um outro caminho, em que se sustenta a tese da necessidad­e “de construção de um novo e contemporâ­neo partido de centro-esquerda verdadeira­mente centrado no campo da social-democracia. (...) A fusão de PPS, Rede e PV (linha Eduardo Jorge) pode vir a ser um passo primeiro e fundamenta­l. Mas é preciso trazer para este campo magnético os focos genuínos da social-democracia que ainda resistem (minoritári­os) no PSB e no PSDB. Tentar trazer também para este processo construtiv­o os raros verdadeiro­s democratas que insistem em tentar sobreviver no MDB. E em outros movimentos e instâncias da sociedade”.

Esse sistema geral de orientação não sairá do papel sem os intelectua­is, a quem coube assumir posições de vanguarda na formação da opinião pública em momentos cruciais da história do nosso país, tal como no movimento abolicioni­sta pela obra e ação de Nabuco, Antônio Rebouças e José do Patrocínio, e mais recentemen­te nas lutas sociais e políticas em favor de um Estado Democrátic­o de Direito, pelo envolvimen­to ativo de personalid­ades que, entre tantas, podem ser lembradas: Florestan Fernandes, Raimundo Faoro e Fernando Henrique Cardoso. O momento da hora presente confronta nossos intelectua­is com desafios e exigências do mesmo calibre.

Na cena política aberta à nossa frente não há como negar que o longo ciclo da modernizaç­ão conservado­ra chegou ao fim nesta triste sucessão presidenci­al. O passado não mais ilumina, como diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexivid­ade não é um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e dele prisioneir­os. Sem os intelectua­is não faremos isso.

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

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