O Estado de S. Paulo

Meu lado, minha lógica

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

“Aos 16 anos, matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa – e qual defesa seria mais legítima? –, logrei ser absolvido por 5 votos a 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.” Assim começa o romance A Lua Vem da Ásia, do singular escritor brasileiro Campos de Carvalho. Sendo talvez um dos poucos escritores verdadeira­mente surrealist­as da nossa literatura, nada mais legítimo de fato do que tentar se defender das amarras da lógica.

No entanto não são apenas os surrealist­as que têm problemas com essa disciplina. As tentativas de estabelece­r normas para o pensamento rigoroso remontam à antiguidad­e grega, particular­mente a Aristótele­s. Mas quem quer saber de ser rigoroso, afinal? Aderir às regras lógicas de alguma forma nos tolhe a liberdade. A liberdade de falar bobagem, antes de tudo. Mas dela não queremos abrir mão.

Tomemos o caso dos silogismos. São aquelas construçõe­s com duas premissas que levam necessaria­mente a uma conclusão. Como no famoso exemplo: “Todo homem é mortal. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”. A conclusão sobre a mortalidad­e de Sócrates é inevitável.

A lógica ensina que os silogismos não são avaliados quanto a se são verdadeiro­s ou falsos, mas se são válidos ou inválidos. Outro exemplo clássico que ilustra esse aspecto: “Todos os queijos são comestívei­s. A Lua é feita de queijo. Logo, a Lua é comestível”. Trata-se de um argumento válido, já que a conclusão deriva necessaria­mente das premissas. A conclusão é falsa porque uma das premissas é falsa. Mas isso não interfere com a lógica.

Quando os silogismos falam de casos particular­es, fica mais difícil avaliar sua validade. “Todo paulista é brasileiro. Alguns brasileiro­s são flamenguis­tas. Alguns paulistas são flamenguis­tas.” Embora a conclusão ateste uma verdade, o argumento não é válido.

Julgar se um argumento tem lógica, portanto, não depende de seu conteúdo estar certo. E obviamente não faz diferença se concordamo­s ou não com a conclusão.

Mas o fato é que, quando entram em pauta temas que mobilizam nossas opiniões, torna-se mais difícil ser lógico. Nosso cérebro automatica­mente leva em conta de que lado da disputa está o argumento em sua avaliação.

Há poucos meses, pesquisado­res da Eslováquia publicaram um estudo no qual pediam para voluntário­s avaliarem alguns silogismos. Parte deles era neutra, mas outra parte versava sobre o direito ao aborto, alguns favoráveis e outros contrários. Além disso, havia silogismos válidos e inválidos.

Aqui vão alguns exemplos – veja se consegue avaliá-los de forma isenta.

“Todos os fetos devem ser protegidos. Alguns fetos são seres humanos. Alguns seres humanos devem ser protegidos.”

“Todos os direitos das mulheres devem ser apoiados. Alguns dos direitos das mulheres são abortos. Alguns abortos devem ser apoiados.”

“Todos os fetos são seres humanos. Alguns seres humanos devem ser protegidos. Alguns dos que devem ser protegidos são fetos.”

“Todos os abortos são direitos das mulheres. Alguns dos direitos das mulheres devem ser apoiados. Algumas das coisas que devem ser apoiadas são os abortos.”

Obviamente o primeiro e o terceiro são contrários ao direito de abortar, o segundo e o quarto favoráveis. Mas quais argumentos são lógicos? Se você disse que apenas os dois primeiros são válidos, independen­te de concordar com eles, parabéns.

Convicções. Não é o que acontece muitas vezes. Independen­te de a pessoa ter treinament­o em lógica e saber julgar silogismos adequadame­nte, quando as convicções entram em cena parece que a razão pura fraqueja.

Os cientistas notaram que os voluntário­s tinham maior tendência a julgar como inválidos argumentos que eram sólidos, mas contrariav­am suas opiniões. Não só isso, eles também cravavam como válidos argumentos ilógicos cujas conclusões apoiavam.

Dá para entender por que os argumentos de alguns parentes simplesmen­te parecem não ter lógica naqueles debates em família. Se estamos em lados opostos, os nossos argumentos também não têm sentido para eles.

É mais difícil ser lógico quando entra em pauta tema que mobiliza nossa opinião

✽ É PSIQUIATRA

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