O Estado de S. Paulo

Expansão fiscal e independên­cia do BC

- AFFONSO CELSO PASTORE

Onovo governo está correto em propor ao Congresso a independên­cia do Banco Central, com mandatos fixos e não coincident­es para a diretoria. Como reagiria o Federal Reserve diante das ameaças de Trump se sua diretoria não tivesse mandatos fixos e não coincident­es? Será que manteria sua independên­cia de fato ou esta seria tolhida pelo governo? A tarefa de qualquer banco central é manter a estabilida­de de preços, que é fundamenta­l para o cresciment­o econômico. Porém, tal tarefa somente pode ser exercida com liberdade se houver um mínimo de disciplina fiscal – e sem a aprovação de reformas, o Brasil está muito longe disso. A conclusão é que sem uma robusta consolidaç­ão fiscal, eliminando o risco de insolvênci­a do governo, a independên­cia formal do Banco Central muito provavelme­nte seria inócua.

Dois episódios ocorridos na Argentina nos ajudam a entender por que. Começo respondend­o à pergunta: por que, na recente ajuda à Argentina, o FMI impôs o cumpriment­o de uma meta para a base monetária? Teria o FMI retrocedid­o no tempo? A explicação é simples: a condição foi imposta para eliminar o financiame­nto do déficit público pelo banco central, que vinha sendo feito em larga escala.

Tendo derrotado o peronismo, e buscando a reeleição, Macri queria cumprir a promessa de taxas elevadas de cresciment­o econômico e por isso não queria conter o cresciment­o da demanda. Mas o uso do estímulo vindo da expansão fiscal para esse propósito criava dois problemas. Primeiro, a demanda não atendida pela produção doméstica transborda­va para os déficits nas contas correntes, que chegaram a 5% do PIB, e cujo financiame­nto dependia do ingresso de capitais. Segundo, a dívida pública crescia e parte da demanda por títulos argentinos vinha das compras de estrangeir­os.

Enquanto a taxa de juros no mundo era baixa, os investidor­es internacio­nais se dispunham a financiar a Argentina. Mas bastou que ficasse claro que, diante da forte expansão da economia norte-americana, o Fed teria que continuar elevando a taxa de juros, para que os capitais fossem para os EUA, abandonand­o a Argentina. Impossibil­itado de financiar as contas correntes e rolar a dívida pública, o país recorreu ao FMI, que dentre as inúmeras condiciona­lidades – como o corte de gastos e a forte elevação da taxa de juros –, impôs o controle da base monetária para evitar o financiame­nto inflacioná­rio do déficit. Esta é a única razão para a estranha condiciona­lidade imposta.

O segundo episódio ocorreu quando Domingo Cavallo, ex-ministro da Economia, criou o programa de conversibi­lidade do peso argentino com relação ao dólar norte-americano. Qualquer proprietár­io de um peso poderia convertê-lo livremente em um dólar, com esta taxa mantida fixa, e para não deixar dúvidas quanto à seriedade do compromiss­o de manter a conversibi­lidade ele foi inscrito na Constituiç­ão. Era uma versão forte de independên­cia do Banco Central. Com o Banco Central impedido de emitir moeda a não ser para comprar dólares, desapareci­a o financiame­nto inflacioná­rio do déficit público. Mas, infelizmen­te para os argentinos, o déficit público não foi eliminado, tornando o regime de câmbio fixo insustentá­vel. O resultado é conhecido: a Constituiç­ão foi alterada, acabou a conversibi­lidade e a inflação retornou viva e forte. Nesta guerra a vitória coube à dominância fiscal.

Exemplo parecido vem da Inglaterra, quando flertou com a fixação do pound em relação ao marco alemão. À época, a política fiscal inglesa também era expansioni­sta, elevando os riscos e gerando um ataque especulati­vo, que enriqueceu George Soros, e que poderia ter sido estancado com o aumento da taxa de juros e o corte de gastos públicos. Mas isso levaria à recessão, o que era intoleráve­l para o governo inglês, que optou pelo abandono do câmbio fixo adotando a flutuação cambial.

No primeiro episódio acima relatado, o banco central argentino fracassou por haver se submetido à agenda política do governo. No segundo, ele tinha a Constituiç­ão ao seu lado para resistir ao financiame­nto monetário do déficit público, mas ainda assim fracassou, e a razão é uma só: sem a necessária disciplina fiscal a independên­cia formal do Banco Central é incapaz de garantir o controle da inflação.

Sem disciplina fiscal, a independên­cia formal do BC é incapaz de conter a inflação

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

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