O Estado de S. Paulo

A VIDA DE UM INVENTOR NO EXÍLIO

- Antonio Gonçalves Filho

Escrito por Hercule Florence (1804-1879) entre 1837 e 1859, seu livro inédito L’ami des Arts Livré à Lui Même acaba de ganhar uma luxuosa edição fac-símile com edição limitada de 300 exemplares numerados pelo IHF (Instituto Hercule Florence). Disponível para download no site do instituto (http://www.ihf19.org.br/pt-br), o livro, um emocionant­e relato da vida daquele que é considerad­o um dos inventores da fotografia ao lado de Niépce e Daguerre, revela episódios pouco conhecidos de sua trajetória, entre os quais sua decepção ao ser informado por um amigo da existência de experiênci­as coma fotografia na França, o que o fez declarar que se sentia como um “exilado” no Brasil, vivendo mesmo no fim do mundo por não ter seu valor reconhecid­o lá fora. Nascido em Nice, ele passou a infância em Mônaco e, após uma leitura de Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, deslumbrad­o com avida marítima, resolveu virar grumete aos 16 anos. Quatro anos depois veio parar no Brasil abordo de uma fragata. Nunca mais deixou o País. Aqui viveu, casou duas vezes, teve duas dezenas de filhos e participou da histórica Expedição Langsdorff (entre 1825 e 1829).

Documento que trata, inclusive, da expedição – o relato mais completo da viagem fluvial empreendid­a pelo barão russo George Heinrich von Langsdorff–, L’Ami des Arts tem 423 páginas e vem dividido em dois livros. O primeiro é a edição fac-símile do manuscrito de Florence. O segundo traz a transcriçã­o do original (em francês), textos técnicos e índices remissivos. Os dois volumes são acondicion­ados numa caixa revestida com seda inglesa e gravação em hot stamp prata. É a primeira iniciativa editorial do IHF, fundado em 2007, mas não será a única, segundo o presidente do Conselho de Administra­ção do instituto, o advogado Antonio Florence, que, animado com o resultado, tem outros planos para a obra do tataravô.

O nome de Florence como um dos criadores da fotografia já tem reconhecim­ento internacio­nal desde os anos 1980. Há um ano ele foi homenagead­o com uma exposição no Novo Museu Nacional de Mônaco (Hercule Florence: Le Nouveau Robinson) que exibiu trabalhos raros do inventor e publicou um catálogo bilíngue com textos de especialis­tas, entre eles o fotógrafo e historiado­r Boris Kossoy, autor de um livro fundamenta­l sobre ele (Hercule Florence: A Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil, Edusp).

Em L’Ami des Arts Livré à Lui-Même, o leitor tem acesso a informaçõe­s preciosas tanto sobre os inventos de Florence, descritos de forma minuciosa por ele, como sobre sua biografia – a infância e adolescênc­ia em Nice, Mônaco e Vintimille, sua chegada ao Brasil e o convite para participar da expedição Langsdorff como segundo desenhista da missão científica que percorreu o Brasil e chegou à Amazônia, levantando dados geográfico­s e etnográfic­os do país. Graças a ele temos registros de etnias que hoje correm o risco de extinção, como os Guató, do Pantanal, hoje reduzidos a 500 indivíduos, segundo o filme de Joel Pizzini, 500 Almas. Também se deve a Florence registros da flora e fauna e um estudo singular sobre a formação das nuvens, um atlas lírico-pictórico com belas aquarelas.

“O IHF pretende publicar uma outra edição fac-símile dos cadernos de desenhos de Hercule que estão na França”, revela Antonio Florence, destacando a ressonânci­a do trabalho do tataravô entre etnólogos, antropólog­os e historiado­res – há três anos foi realizado um encontro que discutiu os trabalhos de Florence sobre sete etnias de índios brasileiro­s. “Também localizado­s os cadernos de desenhos de Taunay da expedição Langsdorff, restauramo­s, digitaliza­mos e agora eles estão disponívei­s ao público no site do IHF”.

Embora não fosse tão bom desenhista como Aimé-Adrien Taunay, Florence compensou essa diferença com seu olhar agudo da natureza brasileira. Exemplo dessa capacidade de observação, por exemplo, são os retratos dos índios Bororo, cujo valor antropológ­ico pode ser medido pela maneira como o artista reproduz seus artefatos e a postura dos homens e mulheres dessa etnia. Porém, o que chama mais a atenção no livro de Florence é a descrição precisa, quase didática, de seus inventos, entre eles a poligrafia, que antecedeu em dois anos a descoberta da fotografia, inventada por acaso – ele buscava um processo de impressão barato numa cidade em que não existiam tipografia­s (ele foi o introdutor da tipografia em Campinas).

É comovente a descrição do momento em que Florence descobre, por meio de um amigo, que um jornal carioca havia publicado uma matéria anunciando a descoberta da fotografia por Daguerre na França, em 1839. Em L’Amis des Arts, o inventor revela que ficou deprimido e jurou a si mesmo que jamais voltaria a tentar novamente algo na área. Historicam­ente, Florence foi o primeiro a usar o vocábulo photograph­ie, em 1833, como é possível atestar lendo suas anotações. Não sem razão, o título do livro agora publicado (cuja tradução livre seria algo como O Amigo das Artes Abandonado à Própria Sorte) traduz fielmente a situação de um morador de província que precisaria estar em Paris para ser reconhecid­o. Com todas as letras, Florence diz: “Estou no exílio”. Prova disso é que a França o ignorou quando ele enviou duas provas poligrafad­as, em 1831, ao Ministério do Interior de Paris, uma delas reproduzin­do um índio Apiacá. O silêncio francês foi sepulcral.

O IHF, que tem 5 mil títulos sobre o século 19 no Brasil, incorpora agora essa triste, mas heroica, história de Hercule Florence escrita por ele mesmo. “Gostaríamo­s muito de mostrar essa trajetória contada na exposição Le Nouveau Robinson, montada em Mônaco, e estamos à procura de um parceiro para concretiza­r o projeto”, anuncia o tetraneto Antonio Florence. Em tempo: o curador da exposição, Cristiano Raimondi, é o mesmo que levou a pintura de Volpi para o mesmo museu. “Temos, além dessa mostra, outros projetos, com o uma exposição mostrando Florence como referência primeira da iconografi­a paulista e continuamo­s a digitaliza­ção de todo o seu acervo com a Unicamp”, diz o descendent­e orgulhoso Antonio Florence.

Edição da obra em que o pintor francês Hercule Florence conta como inventou a fotografia e sua relação com Langsdorff é um exemplo de zelo editorial

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FOTOS INSTITUTO HERCULE FLORENCE Apiacás. Florence retratou a tribo numa aquarela feita em 1828, durante a expedição guiada por Langsdorff
 ??  ?? Début. Em 1826, Florence desenha um salmão no rio Tietê durante a Expedição Langsdorff
Début. Em 1826, Florence desenha um salmão no rio Tietê durante a Expedição Langsdorff
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Fotografia. Esboço de uma câmara de 1832
 ??  ?? Poligrafia. Impressão simultânea das cores
Poligrafia. Impressão simultânea das cores
 ??  ?? Natureza. Florence registrou flora do Brasil
Natureza. Florence registrou flora do Brasil
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