O Estado de S. Paulo

UMA PEÇA AUTOFICCIO­NAL DE BULGÁKOV

- Aurora Bernardini

É importante mencionar alguns aspectos da primeira parte da biografia do médico-escritor ucraniano Mikhail Afanássiev­itch Bulgákov (18911940), hoje considerad­o mundialmen­te um dos mais importante­s escritores do século 20, uma vez que eles são transposto­s em Os Dias dos Turbin, a peça em quatro atos (Carambaia), traduzida por Irineu Franco Perpetuo, o mesmo tradutor de

O Mestre e Margarida (Editora 34), a obra-prima do autor. A peça, várias vezes censurada, terá sua redação final em 1925, enquanto O Mestre e Margarida, iniciado em 1928 e terminado em 1940, só será publicado postumamen­te em versão não expurgada, em 1969, por ocasião de sua primeira tradução completa em Frankfurt, na Alemanha.

Os Dias dos Turbin, estreada sob frenéticos aplausos do público em 5 de outubro de 1926, no antigo Teatro de Arte de Moscou, que os críticos oficiais tachavam de convencion­al, ultrapassa­do e... reacionári­o, é ambientada na antiga casa do autor, em Kiev, num recorte (1918-1919) da guerra civil russa (vários grupos fiéis ao czarismo chamados “Brancos”, mais a coalizão Inglaterra, França e EUA, contra os Bolcheviqu­es) que, conforme se sabe, só terminou em 1923, com a vitória desses últimos.

A biografia diz que Mikhail Bulgákov, primeiro entre sete irmãos, viveu numa família feliz. O pai, sábio e compreensi­vo, é professor de Teologia, a mãe, alegre e amante da música, é professora em escolas para moças, Mikhail, dado a paixões repentinas e dotado de uma magnífica voz de barítono, enamora-se, ainda criança, por Tatiana Lappa (mas, terá – ao todo – três esposas), com quem casará aos 22 anos, um ano antes do início da 1.ª Guerra e três anos antes de conseguir seu diploma com distinção e louvor, como médico-cirurgião, especialis­ta em doenças venéreas. Isso em Kiev, capital da Ucrânia. “Uma cidade maravilhos­a, uma cidade feliz. A mãe das cidades russas. Porém, esses eram tempos lendários, tempos em que nos jardins da mais bela cidade de nossa terra vivia uma geração alentada, jovial”, escreve o autor em

A Cidade de Kiev, um de seus contos. Tudo isso,

infelizmen­te, há de mudar subitament­e. Já em 1916, durante a guerra, ele é destacado como cirurgião em hospitais de campo, para ser, em seguida, nomeado diretor de um hospital na região de Smolenk, lá permanecen­do até 1917, quando é deslocado para Viazma, já dependente da morfina, devido às insuportáv­eis provações pelas quais tem de passar como único médico responsáve­l por casos desesperad­ores. Mais tarde ele mesmo será vítima de uma epidemia de tifo, quase perdendo a vida e deixará a medicina para se dedicar exclusivam­ente à literatura. (Entre seus escritos sobre esse período estão os contos dramáticos Relatos de um Médico Jovem, traduzidos por Homero Freitas de Andrade em O Diabo Solto em Moscou (Edusp).

Em março de 1918, Mikhail volta com a mulher para Kiev, onde vai residir por mais um ano e meio e clinicar na velha casa dos Bulgákov. Em novembro de 1918 participa, como oficial, na defesa da cidade de Kiev – de onde os ocupantes alemães, que haviam designado para o governo ucraniano

Texto do autor de ‘O Mestre e Margarida’ para o teatro fazia duras críticas ao regime soviético, mas até mesmo o próprio Stalin fez questão de ver a montagem

um hétmã fantoche, fogem para a Alemanha – contra a invasão do aventureir­o Petliura que está organizand­o, no campo, um exército de duzentos mil homens, entre cossacos e camponeses.

É nesse momento que começa a peça. Mikhail é encarnado pelo jovem médico Aleksei Turbin, entre os irmãos e os amigos que coabitam na velha residência de outrora e sofrem as vicissitud­es das diferentes ocupações de Kiev.

A peça em si, justifica seu sucesso. É ágil, habilmente dirigida pelo próprio autor, com os golpes de cena (tiros, traições, amores, bebedeiras, mortes, fugas, reencontro­s) nos momentos nevrálgico­s, com tiradas argutas e com o admirável contrapont­o das árias cantadas ou das músicas tocadas pela talentosa família. Relata-se que o próprio Stalin teria presenciad­o 15 vezes a apresentaç­ão dos atos da peça, tais como foram condiciona­dos para serem aprovados pela censura, levando a uma espécie de apoteose dos vermelhos.

Mas... há outra menção que se torna necessária, agora: a da fonte originária da peça. Trata-se de O Exército Branco, o primeiro e volumoso romance escrito por Bulgákov, começado e destruído em 1920, retomado em 1924 e cuja segunda parte sairá em 1925, na revista Rossía, fechada em outubro do mesmo ano. Restam as provas da terceira parte, não publicada, mas que sairá clandestin­amente em Paris, em 1929. Hoje, na leitura do texto completo descobre-se, em todos os bastidores omissos na peça, que há uma apoteose, e dessa vez verdadeira, não dos vitoriosos bolcheviqu­es e sim dos jovens oficiais do derrotado exército do czar.

Além das obras citadas, foram publicados outros livros de Bulgákov no Brasil, entre os quais Um Coração De Cachorro E Outras Novelas (Edusp), exemplo formidável de sátira e ficção científica, e foi apresentad­a com sucesso a minissérie britânica de TV em oito episódios, baseada em seus contos, Diário de um Jovem Médico (A Young’s Doctor Notebook), entre 2012 e 2013.

É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA RUSSA DA USP

 ?? BULGAKOV’S HOUSE MUSEUM-THEATRE ?? Rússia. ‘Os Dias dos Turbin’, montada por A.V. Korshunov em Moscou
BULGAKOV’S HOUSE MUSEUM-THEATRE Rússia. ‘Os Dias dos Turbin’, montada por A.V. Korshunov em Moscou
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