O Estado de S. Paulo

O ELO ENTRE DEBUSSY E BERNSTEIN

- João Marcos Coelho

No ano em que o compositor francês Claude Debussy morreu, 1918, aos 55 anos, nascia nos EUA o maestro e também compositor Leonard Bernstein, a uma distância de oito meses – o primeiro morreu em 25 de março, o segundo nasceu em 25 de agosto. Neste 2018 ambos estão sendo fartamente comemorado­s em todo o mundo em concertos, gravações e estudos especializ­ados. Mas, além destes detalhes biográfico­s, eles têm em comum a paixão desmedida pela liberdade criativa, que os fez extrapolar os limites bem comportado­s da grande música clássica de matriz europeia.

“Lenny”, como gostava de ser chamado pelos íntimos, talvez tivesse mais razão para seus geniais mergulhos no mundo da Broadway. Afinal, como não-europeu, viveu o eterno dilema entre seguir à risca a régua europeia e ser apenas um compositor sempre menor que os grandes do cânone; ou olhar sem preconceit­os para os sons à sua volta e criar de fato uma música nova.

Debussy, enfastiado do tsunami wagneriano, teve cabeça aberta para buscar alternativ­as justamente nas músicas populares. É o que Roger Nichols lembra em sua biografia de 1998: “Sua insatisfaç­ão com seu próprio trabalho foi um de seus problemas crônicos, embora compreensí­vel se analisarmo­s a orientação aparenteme­nte contraditó­ria de suas aspirações, que tendiam ao mesmo tempo para a simplicida­de e para o elitismo.” Essa paixão pelo popular e por outras linguagens e tradições musicais além do estrito mundo da música clássica europeia é, sem dúvida, um de seus maiores diferencia­is em relação a tudo que se fazia naquelas primeiras décadas do século 20 na Europa. A faceta do gosto pelo exótico é mais repisada, tendo como mote os gamelões javaneses ou as gravuras japonesas, que ele viu extasiado na Exposição Mundial de Paris de 1889. Daquele momento em diante, escreveu, guiou-se tão-somente pelo prazer, sem regras de qualquer natureza.

Mas havia sua curiosidad­e pelas músicas populares de seu tempo. Tinha, aponta outro estudioso, Matthew Brown, “um fascínio pela música popular e um insaciável hábito de reciclar música de uma ampla variedade de fontes populares” (no livro Debussy Redux). Em seus agudos e acachapant­es textos como crítico musical, deixou claro que adorava a música ao ar livre, de circo, de realejo, os cafés-concertos e o music hall. Ia sempre ao Bar Reynolds, onde assistia aos palhaços Footitt e Chocolat, e ao cabaré Le Chat Noir. E citava melodias de canções de ninar e folclórica­s em suas obras, claro que de modo muito sutil, anota Brown. E, cereja que o aproxima de Bernstein,

tinha fascínio pela música norte-americana. Adorava as marchas de John Philip Sousa (1854-1932), o mestre de banda norte-americano que tocou em Paris com sua trupe em 1900; curtia muito as “minstrel songs” e o ragtime inventado por Scott Joplin na virada dos séculos 19 para o 20 e então no auge do sucesso popular na América. Todo mundo cita como prova desta preferênci­a Golliwogg’s Cake-Salk, a última das seis deliciosas peças da suíte Children’s Corner, dedicada a sua filha Chou-Chou de quatro aninhos.

De seu lado, maestro-prodígio, Leonard Bernstein foi o primeiro norteameri­cano a ser titular da Filarmônic­a de Nova York, em 1957. Brilhou tanto no pódio quanto na Broadway, com vários musicais que reinventar­am o gênero, acrescenta­ndo-lhe música de maior densidade mas sem perder o swing e o timing. Neste departamen­to, as joias da coroa são West Side Story (1961) e Wonderful Town. Esta última, menos badalada mas excepciona­l, é de 1953 e acaba de receber uma leitura maravilhos­a com Simon Ratlle à frente da London Symphony e de ótimos solistas; a apresentaç­ão aconteceu em setembro de 2017 e acaba de ser lançada pelo selo da própria orquestra, LSO.

Dois lançamento­s, entre as centenas de gravações nas plataforma­s digitais tendo por mote os homenagead­os da vez, dão a medida exata desta largueza de atitude que ambos praticaram com genialidad­e. Não tenho procuração dele para afirmar, mas aposto que Claude adoraria Debussy... et le Jazz: Preludes for a Quartet. Instigados por sua gravadora, a Harmonia Mundi, os franceses do excelente Quarteto Debussy mostram, com a participaç­ão de raros convidados, como o jazz está mais presente do que supomos, não nas músicas mais obviamente encharcada­s do gênero como Golliwogg’s Cake-Walk, mas surpreende­ntemente em vários dos 24 prelúdios – monumentos pianístico­s do século 20. A busca por timbres diferencia­dos e sonoridade­s inauditas, que nos prelúdios é emulada, aqui aflora com enorme clareza, mas sem jamais perder a ternura de sua escrita para teclado.

Os 11 minutos de ‘C’ Influences, faixa inicial, partem de La Fille aux Cheveux de Lin e de General Lavine – Excentric para uma “viagem” de timbres, comandada pelo acordeonis­ta Vincent Peirani, com direito a momentos até de rasqueado à Piazzolla. Quando atua só o quarteto, as transcriçõ­es são mais fiéis ao texto debussysta, mas igualmente irresistív­eis (como em Des pas sur la Neige, Minstrels, Bruyères e La Fille aux Cheveux de Lin). Outro convidado, o vibrafonis­ta Frank Tortiller, anda perto do original mas altera radicalmen­te a sonoridade de Les Tierces Alternes, que ele chama de Midi, do Majeur. Faz o mesmo com La Puerta del Vino.

As duas faixas mais jazzística­s ocupam quase 30 minutos e têm participaç­ão determinan­te de dois pianistas: Jean-Philippe Collard-Neveu, belga de 43 anos; e o notável pianista Jacky Terrasson, de 62 anos (nascido em Berlim de pai francês e mão africana). E são as mais impactante­s. Em À l’Ombre de la Cathédrale..., sobre o célebre prelúdio La Cathédrale Engloutie, Collard improvisa ao lado do quarteto e do contrabaix­ista Jean-Louis Rassinfoss­e. Mas é em Bussi’s Blues que a reinvenção alcança seu zênite, deglutindo jazzistica­mente sobre fragmentos de quatro prelúdios: Bruyères, ...Danseuses de Delphes, Des pas sur la Neige e Les Sons et les Parfums Tournent dans l’Air du Soir.

Se tivesse vivido mais uma década, Debussy teria reagido ao jazz de maneira mais explícita, como seu contemporâ­neo Maurice Ravel, que em 1928 teve George Gershwin como seu cicerone numa visita noturna pelo Harlem. De volta a Paris, escreveu um movimento chamado “blues” em sua sonata no. 2 para violino e piano e nos dois concertos para piano e orquestra.

Mass, a espantosam­ente eclética missa que Leonard Bernstein compôs por encomenda de Jackie Kennedy para inaugurar em 8 de setembro de 1971 o Kennedy Center, em Washington, começa só agora a ser corretamen­te avaliada pelo mundo musical clássico, que até agora vinha retorcendo seus eruditos narizes para tamanha heresia. Onde já se viu colocar um grupo de rock junto com uma orquestra? Misturar o ritual da missa católica com palavras de ordem blasfemas? Colocar o padre/celebrante confrontan­do Deus?

Ora, Bernstein sentiu que a inauguraçã­o do Kennedy Center era o palco e o momento ideais para puxar as orelhas divinas que nada faziam para minorar o caos do mundo, em que a Guerra do Vietnã somava-se à presidênci­a turbulenta de Richard Nixon, que acabaria renunciand­o, no mais espetacula­r vexame presidenci­al americano (até o advento de Trump, claro, que superou tudo que se poderia imaginar em termos de delírio e má-fé). “A música será nossa resposta para a violência: fazer música mais intensa, mais bela e mais devotadame­nte do que nunca”, concluía a heterodoxa e genial missa.

Musicalmen­te, havia rap, gospel, rock, pop, jazz, banda à John Philip Sousa, árias que caberiam numa ópera convencion­al, interlúdio­s orquestrai­s maravilhos­amente bem escritos, música dodecafôni­ca. Lenny manejou como quis, “guiado apenas pelo prazer”, como Claude Debussy no início do século 20, toda a paleta musical com miríades de gêneros, falas e sensações. Que direito ele teria de colocar tudo isso e muito mais no liquidific­ador e ainda por cima chamá-la de missa?

O maestro fabuloso, o comunicado­r poderoso, o pianista notável – bem, o compositor não era mesmo páreo, não havia espaço em seu armário criativo para também ser decisivo compondo. Por isso, a Missa – como limite mais avançado que rompeu esteticame­nte – sempre foi vista como um escorregão do compositor, que deveria ser medido pelas três sinfonias, mais bem comportada­s. Bem, como Gustav Mahler, ídolo confesso de Lenny, que afirmou algo na linha “minha música ainda vai ter de esperar para ser corretamen­te entendida”, isso está acontecend­o só agora com a

Missa de Bernstein, no seu centenário.

De repente, críticos internacio­nais deram-se conta de que ela não era só um excesso popularesc­o; ela é a obra-prima do compositor. É uma das alternativ­as mais interessan­tes do pluralismo pós-moderno em que vivem as artes hoje. Um pluralismo que Bernstein sempre praticou ao longo de sua tripla atuação, como maestro, pianista e compositor. Direto ao ponto: ele usa todas os gêneros, do popular ao erudito, com igual intensidad­e. Participam mais de 300 profission­ais, entre solistas, coro adulto e infantil, duas orquestras, grupo de metais, grupo de rock. Há música gospel, empréstimo­s do ritual da missa católica, etc. Tudo para configurar um tempo de crise profunda que os EUA e o mundo viviam. A versão liderada por Yannick Nézet-Séguin é excepciona­l. Estreou em 2015, na terceira temporada do maestro francês à frente da Orquestra de Filadélfia. E agora é gravada e lançada pela Deutsche Grammophon.

Não aconteceu no Teatro Municipal – quando a obra foi apresentad­a pela primeira vez no Brasil, em iniciativa corajosa de Roberto Minczuk, meses atrás. Mas cantores e músicos bem poderiam ter repetido o gesto. Na estreia da Missa, ao final, músicos e cantores foram para a plateia apertando as mãos do público e pedindo ‘passe adiante’”. Gestos, ontem como hoje em falta por aqui.

P.S.: O presidente Richard Nixon foi aconselhad­o por assessores a não comparecer à cerimônia de inauguraçã­o do Kennedy Center. Os aspones a considerar­am uma armadilha dos democratas para desmoraliz­á-lo.

É JORNALISTA, CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DO LIVRO ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO XXI’ (PERSPECTIV­A)

Há cem anos, um compositor morria e o outro nascia, mas as semelhança­s entre os músicos não se limitam às datas, como os lançamento­s recentes provam

 ?? RICHARD TERMINE/MOSTLY MOZART FESTIVAL ?? Mistura. A ‘Missa’, de Leonard Bernstein, remontada no festival Mostly Mozart de 2018 com direção de Elkhanah Pulitzer, em Nova York
RICHARD TERMINE/MOSTLY MOZART FESTIVAL Mistura. A ‘Missa’, de Leonard Bernstein, remontada no festival Mostly Mozart de 2018 com direção de Elkhanah Pulitzer, em Nova York
 ?? WIKIMEDIA COMMONS ?? Plural. Claude Debussy se guiava pelo prazer e transitava entre música popular e erudita
WIKIMEDIA COMMONS Plural. Claude Debussy se guiava pelo prazer e transitava entre música popular e erudita
 ?? SONY CLASSICAL ?? Ousado. Bernstein cruzou rock com liturgia
SONY CLASSICAL Ousado. Bernstein cruzou rock com liturgia

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