O Estado de S. Paulo

A ARTE DO CORPO AUSENTE

- Cotter Holland

Se a arte não é sobre a vida e a morte, e as emoções e a ética que as cercam, então ela é sobre o quê? Estilo? Gosto? Resultados do leilão? Alguns artistas concentram-se nestes, mas a linha de raciocínio mais interessan­te para a linha nada cool dos resultados financeiro­s é o que Bruce Nauman adota. Ele abordou essa linha seguindo vários caminhos: história, humor, choque, política e variedade formal. E ele mesclou esses caminhos na acidentada rodovia de uma carreira, pela qual somos convidados a viajar em Bruce Nauman: Disappeari­ng Acts, uma retrospect­iva de meio século que ocupa todo o sexto andar do Museu de Arte Moderna e quase todas as instalaçõe­s do MoMA PS1.

É uma viagem fascinante. Agora com 76 anos, e ainda trabalhand­o (há obras de 2018), Nauman fez muito para mudar como definimos o que é arte e o que a arte é. Sem ser abertament­e tropical, ele tem persistent­emente encarado o mundo através de um olhar crítico, com o resultado de que a arte que ele fez décadas atrás é pertinente ao nosso presente momento americano, moralmente doloroso. E até mesmo sua arte mais espalhafat­osa e desproporc­ional se mostra pessoal, originada de emoções extremas que todos nós sentimos – pânico, desespero, repugnânci­a, hilaridade – uma a uma.

A retrospect­iva é a segunda de Nauman no MoMA – a primeira foi em 1995 – embora esteja longe de ser uma repetição. A pesquisa anterior foi, entre outras coisas, um ataque punitivo audível. O nível de ruído fazia você querer apressar-se para passar por ela. A nova parece, pelo menos por contraste, contida. A paisagem sonora é na verdade suave. Você ouve alguém escolher uma simples música de piano. Um violão toca uma música country triste. E em um vídeo de 1966, no saguão de entrada, um jovem Nauman se afasta, não sem ser melodicame­nte, com um violino.

Os excelentes curadores – Kathy Halbreich, principal organizado­ra da exposição (e cocuradora da retrospect­iva anterior), com Heidi Naef e Isabel Friedli, do Schaulager Basel, e Magnus Schaefer e Taylor Walsh, do MoMA – cuidaram para que você possa ter uma visão cronológic­a da arte de Nauman em qualquer local, mas eu recomendo vivamente que você visite ambos.

As duas instalaçõe­s parecem intrigante­mente diferentes. A do MoMA é, como de costume, totalmente aberta, branca, inundada de luz e selada de qualquer sugestão de existência de um mundo externo. Na PS1, o trabalho ocupa um labirinto de três andares de corredores e recintos estreitos e pouco iluminados. Muitos já foram salas de aula de uma escola pública – um ar úmido de angústia adolescent­e ainda se agarra a eles – e provavelme­nte são do tamanho dos ateliês iniciais de Nauman.

Mas a grande razão para encarar os dois lugares é que Nauman merece ser visto na íntegra.

Quando você fala sobre a vida e a morte, você está falando sobre o corpo, presente ou ausente. E o corpo – dele, nosso – tem sido o foco principal do trabalho de Nauman desde o início. Não sei como esse foco se desenvolve­u, mas quando ele se matriculou no programa de mestrado em Belas Artes da Universida­de da Califórnia, em Davis, em 1964, já estava lá. Ele passou seu primeiro ano fazendo pintura abstrata, depois largou isso para sempre. Ele seguiu para a escultura, e isso pareceu ligar um interrupto­r, apontando o caminho.

O minimalism­o era, então, o estilo ‘quente’, mas ele achava sua frieza industrial pretensios­a e voltava-se para fazer coisas menores, ásperas e retorcidas, que se referiam ao corpo, ou a partes dele. Muitas vezes, esse corpo era, pelo menos teoricamen­te, seu, como é o caso de quase metade das 21 esculturas e desenhos, todos da década de 1960, na primeira galeria do MoMA.

A galeria parece o rescaldo de uma autópsia, com os restos descartado­s esperando pela limpeza. Um molde de cera, verde gangrenado, de um braço e ombro, cortado logo acima do queixo, está pendurado na parede. (Seu título, Da Mão para a Boca, introduz a propensão de Nauman para trocadilho­s visuais-verbais.) Coisas que parecem ser grandes tiras de gordura crua estão no chão. Outra escultura de parede, Modelos em néon da metade esquerda do meu corpo, tomados em intervalos de dez polegadas, é uma rede pouco atraente de tubos de luz levemente brilhantes e escrita flácida.

O vídeo – novo na arte, barato de produzir, fácil de mostrar – tornou-se um meio de comunicaçã­o primordial para Nauman e, com isso, ele continuou, por um tempo, a ser seu próprio tema mais maleável. Em uma peça chamada Art Make-Up: No. 1 White, No. 2 Pink, No. 3 Green, No. 4 Black, ele mancha seu rosto e peito nu com camadas de pigmentos coloridos. Ele está se transforma­ndo em uma pintura viva, mas também parece estar brincando com as ficções e os estigmas de raça em uma época – 1967-1968 – em que os Estados Unidos ardiam pela violência racial.

Por volta de 1970, imagens de seu próprio corpo saíram de vista. E em certas obras, ele convidou os espectador­es – nós – a tomar fisicament­e o seu lugar. Ele apresentou o corredor da peça por onde caminhava como uma instalação autônoma, com câmeras de vigilância adicionada­s. A peça tornouse agora um exercício de participaç­ão do público na claustrofo­bia e na paranoia.

A imagem de Nauman como um caubói estava em ampla circulação na época da retrospect­iva de 1995. E para algumas pessoas, deu cor ao modo como sua arte era percebida. Era visto como arte masculina e, como tal, evidência de que ele era apenas outro artista macho alfa dando uma volta institucio­nal de vitória ao redor da arena. O ambiente agressivo da exposição não ajudou.

Essas reações, embora não infundadas, obscurecer­am a natureza de sua arte. A nova retrospect­iva, menos teatral e mais meditativa – uma seleção substancia­l de trabalhos em papel é de grande ajuda – permite que vejamos com mais clareza onde está a arte de Nauman, eticamente falando, e como ela se conecta com a política no presente.

Ele nos permite ver a imagem de Nauman de animais enforcados e esfolados (ele os adaptou de modelos da taxidermia) como antecipató­rios de uma época em que a proteção de recursos naturais, incluindo a vida selvagem, está sendo destruída. Uma escultura de néon de 1981 que descreve a “violência americana” na forma de uma suástica sugere que o nacionalis­mo branco é uma condição crônica. Ele diz algo sobre a visão de Nauman da arte como um instrument­o moral.

Na videoinsta­lação Mapeando o Estúdio II (Sem chance, John Cage), de 2001, o corpo, em todas as suas manifestaç­ões, desaparece­u. Para este trabalho monumental, Nauman colocou câmeras de vídeo em seu estúdio durante a noite por várias noites para registrar o que acontece quando ele não estava lá. Muitas coisas: cães distantes latem, filhotes de coiotes uivam, ratos correm, gatos andam à caça. O resultado é um estudo no nível do solo em primeiras e última coisas. E uma lição de arte e vida sobre como estar ausente e não estar.

Retrospect­iva do americano Bruce Nauman, um dos grandes nomes da arte conceitual, cobre 50 anos de sua produção e apresenta peças inéditas

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FOTOS: VINCENT TULLO/THE NEW YORK TIMES A instalação ‘Mapping the Studio II’, de 2001, em exposição no MoMA Cores.
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 ??  ?? Obras.‘Contrappos­to Studies’ (2015), ’Autorretra­to como uma Fonte’ (1966), ‘Kassel Corridor: Elliptical Space’ (1972), e uma obra em néon de 1967
Obras.‘Contrappos­to Studies’ (2015), ’Autorretra­to como uma Fonte’ (1966), ‘Kassel Corridor: Elliptical Space’ (1972), e uma obra em néon de 1967
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