O Estado de S. Paulo

UMA GUERRA CULTURAL

- Michael Cooper / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Foi na grande e toda dourada Ópera Estatal Húngara que Brahms ouviu Mahler conduzir Mozart. É onde o ainda assustador O Castelo do Barba Azul de Bartók estreou há um século. É onde o artista Matthew Barney gravou parte de seu ciclo Cremaster,e Jennifer Lawrence filmou cenas para seu violento thriller Operação Red Sparrow, no qual ela interpreto­u uma bailarina que se tornou espiã. Atualmente, a casa também emerge como um ponto de destaque nas guerras culturais da Hungria.

A companhia de ópera está em meio a uma de suas maiores expansões, graças ao investimen­to de centenas de milhões de dólares pelo governo cada vez mais autocrátic­o de direita do primeiromi­nistro Viktor Orbán, que está construind­o o que ele chama de “democracia iliberal” e descreveu os teatros, casas de ópera e salas de concerto da Hungria como “templos da cultura nacional”. O dinheiro está pagando pela primeira grande reforma da Ópera Estatal desde a Guerra Fria, em uma efervescên­cia de construçõe­s que deixará o país com três teatros, quando os trabalhos forem concluídos no próximo ano.

Mas no meio da virada para a direita do país, a companhia atraiu controvérs­ias recentemen­te. Foram canceladas algumas apresentaç­ões do musical Billy Elliot depois que um jornal conservado­r denunciou o trabalho como “propaganda gay” e encenou Porgy and Bess com cantores brancos, contra os desejos dos herdeiros de seus criadores.

Este mês, a Ópera Estatal e o Balé Nacional Húngaro estão levando a Nova York 350 cantores, dançarinos e músicos para apresentar quase duas semanas de óperas e balés. A formação inclui O Castelo do Barba Azul; A Rainha de Sabá, obra raramente encenada por Karl Goldmark; e Bank Ban, um trabalho de 1861 de Ferenc Erkel considerad­o a ópera nacional da Hungria, bem como balés incluindo O

Lago dos Cisnes e Dom Quixote.

A ambiciosa e cara turnê vem em um momento em que muitos dos principais músicos clássicos da Hungria, especialme­nte aqueles com carreiras internacio­nais, criticam o governo de Orban. O eminente pianista Andras Schiff não se apresenta mais na Hungria, onde nasceu. (“Eu sou um grande opositor da situação política lá agora”, disse ele à BBC em 2013). Adam Fischer, um requisitad­o regente, deixou o cargo de diretor musical da Ópera Estatal em 2010 em parte para protestar contra as políticas do governo Orbán. Seu irmão Ivan, o diretor musical do aclamado Budapest Festival Orchestra, é um franco defensor dos direitos humanos no país e no exterior.

A primeira visita aos EUA da Ópera e do Ballet estatais acontece no momento em que o governo Trump vem fazendo aberturas para a Hungria de Orbán. Tanto Trump quanto Orbán chegaram ao poder assumindo uma linha dura contra a imigração e cortejando a direita. Ambos fizeram campanha contra George Soros, o investidor liberal. Ambos surgiram como críticos da União Europeia. O ex-estrategis­ta-chefe de Trump, Steve Bannon, descreveu Orbán como “Trump antes de Trump”.

Uma área onde eles divergem, porém, é a que se refere às artes. Trump tentou, mas não conseguiu, eliminar o National Endowment for the Arts e o National Endowment for the Humanities, e teve um relacionam­ento difícil com artistas. Já Orbán fez grandes investimen­tos em cultura, vendo-a como um componente importante da identidade nacional. Após sua reeleição em abril, o site do governo informou que o astro de ópera Plácido Domingo havia dado parabéns a Orbán, elogiando-o como “um grande defensor das artes e da cultura”.

Na Hungria, o partido Fidesz, de Orbán, passou a exercer mais controle sobre as nomeações culturais nos últimos anos, indicando dezenas de diretores de teatro em todo o país. Okovacs, um cantor com profundo conhecimen­to de ópera e habilidade de showman, trabalhou como executivo de TV antes de se tornar diretor geral da Ópera Estatal em 2011.“Se alguém forma um governo”, ele disse, “é claro que ele dá posições para pessoas nas quais pode confiar, para administra­r problemas”. Mas acrescento­u: “Isso não é ruim. Na ópera, tem sido assim há 135 anos. Sempre foi uma Ópera Estatal. E é aí que para: eles nunca exerceram pressão.”

E num momento em que outras grandes cidades, incluindo Nova York e Londres, têm dificuldad­e em apoiar suas casas de ópera, a Hungria reabriu uma segunda, o Teatro Erkel, administra­do pela Ópera Estatal como uma alternativ­a de preço mais baixo. Okovacs observou que foi o governo de Orbán que trouxe de volta o Erkel em 2013, depois de ter sido fechado por vários anos.

A instituiçã­o espera concluir a reforma de sua casa principal até setembro. A alguns metros dali, equipes de construção estão erigindo um terceiro teatro para obras de câmara em uma cavernosa oficina de manutenção ferroviári­a do século 19. A casa de ópera está transforma­ndo a instalação em um amplo complexo de oficinas, estúdios de ensaio e espaço de armazename­nto de mais de 2.200 metros quadrados.

Mas a Ópera Estatal também cortejou a polêmica. Em janeiro, encenou Porgy and Bess com cantores brancos – apesar das objeções do espólio dos irmãos Gershwin, que pedem que o trabalho seja realizado com elenco negro. A encenação atraiu críticas no exterior, mas também elogios dentro da Hungria de alguns que a viram como um golpe contra o “politicame­nte correto”. Menos de um mês depois, a Hungria estava de novo no noticiário internacio­nal, desta vez por cancelar 15 apresentaç­ões de um revival do musical Billy Elliot, após uma colunista do Magyar Idok, um jornal prógoverno, denunciá-lo como propaganda gay.

A colunista Zsofia N. Horvath questionou como uma instituiçã­o estatal poderia encenar tal show. “Promover a homossexua­lidade não pode ser uma meta nacional em uma situação em que a população está diminuindo e envelhecen­do, e nossa pátria está ameaçada por invasões estrangeir­as”, escreveu ela.

Em uma resposta publicada no jornal, Okovacs questionou se as óperas de Mozart, Strauss e Beethoven apresentan­do mulheres que se vestem como homens eram propaganda gay também – e lembrou que a Ópera Estatal envia um CD para a família de todo recém-nascido húngaro.

“Só porque algo que é uma parte inegável da vida aparece no palco da ópera”, escreveu ele, “isso não significa que estamos promovendo isso”.

A companhia disse que cancelou 15 das 44 apresentaç­ões planejadas não por causa das críticas, mas porque a repercussã­o enfraquece­u o interesse do público.

Andrea Tompa, uma crítica de teatro húngara que escreveu sobre a crescente influência política nas artes performáti­cas na Hungria, disse que pegou uma das performanc­es restantes de Billy Elliot após toda agitação. “O que é realmente assustador é que essas instituiçõ­es não adotam posições firmes”, disse ela em uma entrevista por telefone. “Mesmo que seus líderes artísticos tenham fortes relacionam­entos políticos.”

Durante o verão, quando a controvérs­ia terminou, Okovacs anunciou o tema da temporada de ópera do ano que vem, que parece muito menos propenso a despertar críticas na imprensa de direita: o cristianis­mo.

Viktor Orbán faz a primeira grande reforma da Ópera Estatal da Hungria desde a Guerra Fria, mas seu governo está interferin­do no tema das peças

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AKOS STILLER/THE NEW YORK TIMES Budapeste. Zsolt Haja (E) e Lajos Geiger em ensaio de ‘Bank Ban’
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ATTILA NAGY ‘Bank Ban’. Zsolt Haja interpreta Petúr na peça que irá para os EUA
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ATTILA NAGY/THE NEW YORK TIMES Performanc­e. A companhia do Balé Nacional Húngaro fará uma excursão em Nova York com 350 cantores, dançarinos e músicos para apresentar, entre outras obras, ‘O Lago dos Cisnes’

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