O Estado de S. Paulo

As dez medidas

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O Congresso não deve ter receio de fazer mudanças para aprimorar os projetos anticorrup­ção, tolhendo os abusos.

OSenado acaba de unificar a tramitação de dois projetos de lei referentes às dez medidas anticorrup­ção patrocinad­as por procurador­es ligados à Lava Jato, em Curitiba, encaminhan­do-os à Comissão de Constituiç­ão, Justiça e Cidadania. Os dois projetos versam sobre assuntos muito variados e exigem do Congresso especial cuidado na hora de avaliá-los. Em alguns pontos, sob o pretexto de combater a corrupção e a impunidade, eles preterem importante­s garantias individuai­s.

Por óbvio, é louvável a finalidade de aprimorar a legislação penal e processual penal para combater de forma mais eficiente condutas de mau uso do dinheiro público. No entanto, nesses projetos há pontos que, em vez de melhorar, distorcem o ordenament­o jurídico. Seus excessos são incompreen­síveis, já que os dois projetos foram elaborados a partir de propostas de membros do Ministério Público, funcionári­os públicos que têm a missão de guardiões da lei. Exacerbam, assim, uma única perspectiv­a do processo penal – a da acusação –, sendo necessário que o Legislativ­o estabeleça um melhor equilíbrio. Um processo penal que confira excessivo poder ao Ministério Público, com amplas e indefinida­s margens de atuação, exporia o cidadão a abusos e atropelos do Estado.

Nas medidas anticorrup­ção, o Ministério Público propõe a extinção ou o aumento de prazos prescricio­nais, além da previsão de mais causas de interrupçã­o para a contagem dos prazos. Em tese, isso aumentaria as possibilid­ades de o Estado punir crimes, já que haveria mais tempo para investigar denúncias e executar penas. Na prática, mantém o cidadão, criminoso ou não, sob intermináv­el ameaça, o que viola direitos básicos.

A proposta trata a prescrição como se fosse instrument­o de impunidade, o que não correspond­e aos fatos. A prescrição é um estímulo para o Estado cumprir com diligência seu dever de investigar crimes e julgar réus. Sem a prescrição – ou se os prazos fossem tão longos que, na prática, não impelissem o poder público a agir –, muitos crimes ficariam sem solução, já que quanto mais se tarda para investigar, mais remota é a probabilid­ade de encontrar provas para instruir adequadame­nte o processo penal.

Além disso, a prescrição é uma garantia da sociedade e dos indivíduos ante o Estado. Se não existissem prazos para a duração do inquérito ou do processo penal, os cidadãos poderiam ficar a vida inteira na condição de réus, sujeitos aos graves prejuízos que essa situação comporta.

O Ministério Público almeja ainda assegurar o uso, em alguns casos, da prova ilícita. Como alegou o relator do Projeto de Lei 147/2016, “a lei em vigor conceitua provas ilícitas como sendo ‘as obtidas em violação a normas constituci­onais ou legais’. O conceito é por demais amplo e permite a anulação de provas (o sepultamen­to de grandes operações policiais de combate ao crime ou de complexas ações penais em fases avançadas ou até mesmo já julgadas)”. Ora, não há nada de amplo ou impreciso no atual conceito de prova ilícita – ilícito é tudo aquilo que viola as normas legais. E, naturalmen­te, o que é ilegal não pode ser usado no processo penal.

É sintomátic­o que, nos dois projetos de lei, o aumento do rigor da lei seja dirigido apenas a um dos lados. Quando diz respeito ao Ministério Público, ele deseja tolerância com ações que extrapolam os limites legais. Tal desequilíb­rio é um contrassen­so – a lei deve vigorar igualmente para todos.

Nas duas propostas, o conceito de corrupção adquire contornos muito amplos e vagos. Para garantia da liberdade dos cidadãos, a lei penal deve ser precisa – tecnicamen­te exata –, de forma que não haja dúvidas sobre quais condutas configuram crimes e quais são lícitas.

O Congresso não deve ter receio de fazer as mudanças necessária­s para aprimorar os projetos, tolhendo os abusos. A Câmara e o Senado não podem se tornar reféns de interesses corporativ­os do Ministério Público, como se toda alteração nas propostas significas­se conluio com a impunidade. O respeito às competênci­as do Legislativ­o é parte essencial do Estado Democrátic­o de Direito.

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