O Estado de S. Paulo

Eliane Cantanhêde

- ELIANE CANTANHÊDE E-MAIL: ELIANE.CANTANHEDE@ESTADAO.COM TWITTER: @ECANTANHED­E ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Bolsonaro brinca com fogo, mas quem está saindo chamuscado com suas propostas é o Brasil.

Quem brinca com fogo pode se queimar, mas quem está saindo chamuscado das propostas do presidente eleito Jair Bolsonaro não é ele, mas o Brasil. O duro artigo do governo da China e o duríssimo cancelamen­to de uma visita oficial do chanceler brasileiro ao Egito devem acender o sinal amarelo no QG de Bolsonaro, que tem uma grande vantagem: sabe recuar. Pois é hora de recuar.

Política externa é “de Estado”, não “de governo”, mas é óbvio que novos presidente­s têm direito de fazer ajustes, calibrar o tom e deixar a sua marca nas relações com o mundo. Só não podem dar cavalo de pau, porque política externa se faz com credibilid­ade e estabilida­de, para não atrair retaliaçõe­s imediatas ou perda de imagem do País a médio prazo.

Aliás, se Bolsonaro condena a política externa ideológica do PT, ele não pode incorrer no mesmo erro, com uma política externa igualmente ideológica, no sentido inverso. Também não convém ignorar que o governo Temer já promoveu uma guinada de pragmatism­o, reaproxima­ndo Brasília de Washington e afastando de Caracas.

Entre as bombas acionadas pelas falas de Bolsonaro na área internacio­nal destaca-se a transferên­cia da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, rompendo décadas de neutralida­de do Brasil no Oriente Médio, a favor de Israel e contra os Países Árabes, que têm fortes laços comerciais e culturais aqui.

O Egito – um dos árabes mais moderados – já chutou o pau da barraca, cancelando o convite para o chanceler Aloysio Nunes Ferreira ir ao país nesta semana com dezenas de empresário­s que, inclusive, já estavam no Cairo. E tudo por um voluntaris­mo de Bolsonaro. Mudar a embaixada para Jerusalém não muda absolutame­nte nada a favor do Brasil. Muito ônus para zero bônus. Aliás, só a Guatemala e os EUA de Donald Trump fizeram isso. O Paraguai, que tinha feito, já voltou atrás.

Outra bomba de Bolsonaro é acenar para Taiwan e dizer que “a China pode comprar no Brasil, mas não comprar o Brasil”. Em texto pouco usual no Daily News, seu porta-voz extraofici­al, o governo chinês ameaçou retaliar e lembrou que a China é o nosso principal parceiro comercial, com um superávit mais do que favorável ao Brasil, e os dois países não competem entre eles, ao contrário, têm economias e interesses complement­ares.

Está em pauta a extradição de Cesare Battisti, que agrada a Itália e depende do STF, mas Bolsonaro já desativou três outras bombas: não fala mais em retirar o Brasil da ONU, que seria um escândalo; romper com o Acordo de Paris, no qual o Brasil defende não só os interesses do mundo, mas os seus próprios, inclusive do agronegóci­o; e unir Agricultur­a e Meio Ambiente, que foi um susto para a União Europeia, forte importador­a de carne e soja e ciosa da sustentabi­lidade do planeta.

Quanto à ameaça de Bolsonaro de simplesmen­te romper relações com Cuba, ela não pareceu tão absurda assim para experiente­s diplomatas brasileiro­s, que ridiculari­zam a “grande democracia cubana” boicotando o Brasil em defesa do PT. Afinal, foi Havana quem retirou sua embaixador­a de Brasília após o impeachmen­t de Dilma Rousseff e jamais concedeu agrément para o embaixador Fred Meyer, um amigo de Cuba.

Fora isso, Bolsonaro está causando tanto ruído, à toa, por três motivos: desconheci­mento de política externa, aliança com os evangélico­s e um alinhament­o, mais do que político, quase psicológic­o, a Trump. Vale dizer que, afora pequenos hiatos, o Brasil jamais teve alinhament­o automático com nenhum parceiro, nem com a grande potência.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, diz o bordão de Bolsonaro. Em política externa, é “o interesse do Brasil acima de tudo e de todos”, inclusive das ideologias que, assim como vêm, também vão.

Bolsonaro condena a política externa ideológica do PT e não deve incorrer nesse erro

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