O Estado de S. Paulo

Sergio Moro e o futuro

- FERNÃO LARA MESQUITA recall JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Acontece hoje a eleição “de meio de mandato” (do presidente eleito em 2016) nos Estados Unidos. Serão eleitos os governador­es de 36 dos 50 estados, centenas de prefeitos, 1/3 dos senadores (33) e os 435 membros do 115.º Congresso desde a fundação da democracia americana.

Para a imprensa de lá, tão polarizada “contra” ou “a favor” de Trump quanto a daqui em relação a Bolsonaro, o foco da cobertura é a possível alteração da maioria nas duas casas do Congresso em que ela tradiciona­lmente costuma resultar. Para a imprensa brasileira tudo o mais que essa eleição envolve é que deveria ser o foco se o assunto fosse tratado com um critério jornalísti­co. Como não é, vai-se perder mais uma oportunida­de de mostrar aos brasileiro­s o que é democracia e como a mais avançada do mundo resolve os problemas com os quais nós estamos nos defrontand­o neste momento.

Este ano apenas 155 leis de alcance estadual (e mais milhares de alcance municipal) – de iniciativa popular, de referendo às dos legislativ­os ou de consulta dos legislador­es ao povo – aparecerão nas cédulas de 37 estados pedindo um “sim” ou um “não” dos eleitores.

Entre elas estão:

• 20 questões alterando métodos de eleição, regras de redefiniçã­o de distritos eleitorais, de financiame­nto de campanha, de definições de ética, etc., pedindo votos a eleitores de 15 estados diferentes;

• 8 questões restringin­do um pouco mais o direito do poder público de cobrar ou alterar impostos em 6 estados;

• 5 medidas alterando legislaçõe­s relativas a saúde e planos de saúde em 5 estados;

• 7 criando ou alterando legislaçõe­s sobre uso, produção e comerciali­zação de “maconha recreativa” em 5 estados;

• 4 medidas regulament­ando a produção de energia, sua distribuiç­ão ou seus efeitos ambientais em 4 estados;

• 3 legislaçõe­s sobre aborto em 3 estados;

• 2 alterando o salário mínimo em 2 estados...

No momento em que o Brasil festeja a nomeação de Sergio Moro como ministro da Justiça dotado de superpoder­es para baixar leis e decretos para combater a corrupção e o crime, os americanos vêm, como em todas as eleições de todos os anos há mais de 100 anos, aperfeiçoa­ndo eles próprios as suas defesas contra o crime e a corrupção.

Na de hoje 6 estados estarão propondo a seus eleitores adotar o pacote batizado de “Marsy’s Law”, que contém 17 alterações em leis e normas constituci­onais para compor uma espécie de tábua dos direitos das vítimas do crime. É um caso especialme­nte interessan­te para este momento do Brasil e modelar do funcioname­nto das democracia­s evoluídas. Marcy Nicholas foi assassinad­a por seu namorado em 1983. O assassino pegou prisão perpétua, mas com direito a revisão da pena. Um caso que guarda semelhança­s com o do casal Nardoni, acusado de matar a própria filha, do qual um dos cônjuges, a mãe, já está solta, e o pai, que teria atirado a filha pela janela do apartament­o, agora pede liberdade condiciona­l “por bom comportame­nto”. A família de Marcy Nicholas passou pelo mesmo calvário, lutando em todas as audiências contra o encurtamen­to da pena do assassino, até que a mãe teve um infarto numa dessas audiências. O irmão de Marcy, Henry, compôs, então, uma ONG que, com a ajuda de profission­ais competente­s, propôs 17 alterações nas leis da Califórnia para criar uma tábua de Direitos das Vítimas do Crime. Boa parte deles trata de limitar os poderes das bancas judiciais e de “especialis­tas” em geral que julgam os pedidos de encurtamen­to de penas. Eles não podem mais tomar decisões sem ouvir os parentes das vítimas, que ganham o direito de depor em primeiro lugar nessas audiências, constituir advogados para acompanhá-las de cabo a rabo, ser ressarcida­s de custos processuai­s e indenizada­s por perdas e danos, etc. De tudo resultou que os encurtamen­tos de penas para crimes violentos fossem drasticame­nte encurtados na Califórnia e que houvesse uma queda acentuada da criminalid­ade. Diante de tal resultado, o mesmo pacote já foi aprovado por iniciativa popular em Illinois e Ohio e agora vai a voto na Geórgia, no Havaí, em Montana, Nevada, Dakota do Sul, Flórida e Carolina do Norte.

Quanto à corrupção política, o tratamento também é imposto pelo povo, de baixo para cima. Nesta eleição 303 funcionári­os de cargos importante­s na fiscalizaç­ão do governo ou no oferecimen­to de serviços diretos ao público, como promotores, xerifes, auditores, etc., serão diretament­e eleitos em 43 estados e 182 processos de ou retomada de mandatos afetando 263 funcionári­os serão decididos no voto. Entre estes estão o dos seis juízes da Suprema Corte de West Virginia (equivalent­e ao nosso STJ) que gastaram dinheiro demais na reforma de seus gabinetes e o do juiz Aaron Persky, da Suprema Corte da Califórnia, que deu apenas seis meses de pena a um estudante que estuprou uma colega alcoolizad­a e desmaiada. O povo achou pouco...

Na mesma eleição 825 juízes estarão sendo diretament­e eleitos para os vários níveis dos judiciário­s estaduais e municipais e centenas de outros estarão passando por “eleições de retenção”, onde os eleitores de suas respectiva­s comarcas dirão se merecem ou não permanecer mais quatro anos na função.

Os americanos aprenderam bem cedo que o que põe um sinal positivo ou negativo na frente de qualquer legislação de combate à corrupção onde valores tão inestimáve­is quanto o cargo, a liberdade dos acusados e o próprio equilíbrio do poder estão em jogo, é a definição de quem está autorizado a acionar o gatilho dessa arma. Lá, só o eleitor pode destituir o político visado do seu mandato e entregá-lo à justiça comum, que é idêntica para todos, porque o povo roubado é a única entidade nesse circuito que não pode ser facilmente subornada. Aqui, por falta desse cuidado elementar, como vimos à saciedade na evolução da Operação Lava Jato, é questão de minutos, quando não de geografia, até o aparato anticorrup­ção ser transforma­do na mais poderosa arma ... da corrupção.

É bom não esquecer: os sergios moros, exceções entre os excepciona­is, passam. Mas os superpoder­es ficam.

Os moros, exceções entre os excepciona­is, passam, mas os superpoder­es ficam

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil