O Estado de S. Paulo

Da semelhança entre viajar e nascer

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Alguns leitores deste caderno confirmara­m que o homem mais viajado do mundo esteve recentemen­te em São Paulo, numa visita-surpresa a um velho amigo que completava seu sexagenári­o. Como sói acontecer nessas ocasiões especiais, os que o viram de perto não portavam máquinas fotográfic­as e o único amigo da coluna que conseguiu registrá-lo em seu telefone celular produziu uma imagem de tão baixa definição que é impossível dizer se o que se vê é Mr. Miles ou um abajur lalique.

Contam os circunstan­tes que o intrépido viajante esteve num bar de certo bairro concorrido da cidade, saudou seu bom amigo com um discurso repleto de lembranças, sorveu uma dose dupla de uísque e partiu, deixando atônitos e boquiabert­os os que duvidavam de sua existência.

Miles confirma-nos, em e-mail, que de São Paulo seguiu para o Chile. Esteve na propriedad­e rural de Don Acuña, na localidade de Laguna Verde, onde, confessa, amarrou um bode com vinho em caixas TetraPak. Don Acuña é um homem de mil instrument­os com quem Mr. Miles já esteve nos mais remotos lugares e nas mais constrange­doras situações. “Ele é tão conhecido em toda parte que a simples menção de seu nome já me livrou de awful situations. Houve casos, contudo, em que ao relatar que privava da amizade de Don Acuña tive armas apontadas para a minha cabeça – e jamais descobri why it happened.

Dos domínios desse personagem chileno, Mr. Miles responde aos leitores:

Mr. Miles, quais são as coisas que o senhor não deixa de fazer quando visita um lugar pela primeira vez? Arthur B. de Oliveira, de Mairiporã, São Paulo

Well, my dear Arthur, eis uma excelente pergunta. Levei alguns anos para aprender porque, no começo, era um viajante afobado, ávido por conhecer o máximo possível de atrações in a short time. Um dia, ouvindo consideraç­ões sobre o tempo de um criador de cavalos na Mongólia extremamen­te sábio, comecei a entender – e venho me esforçando para aprimorar essa técnica – que só se obtém com intensidad­e de conhecimen­to, com vagar e introspecç­ão de atitude.

De certa forma, my friend, conhecer um lugar novo é como nascer, no mais literal do sentido que essa palavra traz.

O viajante que encontra o desconheci­do começa vendo penumbras e ouvindo sons que não distingue. Estranha o que lhe dão de comer e alterna momentos em que se sente profundame­nte desamparad­o com instantes em que descobre o carinho dos que o cercam.

Yes, Arthur: it’s like to be born again. Por isso, não adianta queimar etapas. Para conhecer um lugar novo é preciso ter o tempo, o interesse e a paz desarmada de um recém-nascido. Descobrir cada coisa a seu tempo.

Deixar que os prédios, os rios e as pessoas ganhem forma. Permitir que as palavras, os gestos e as intenções ganhem sentido. É, in fact, um trabalho para a vida inteira – e é por isso que insisto que, por mais que eu viaje, nunca vou chegar a conhecer (no sentido amplo da palavra) lugar algum.

Voltando à sua pergunta, Arthur, quando visito um lugar pela primeira vez eu não deixo, jamais, de me encantar. Como quem nasce. Sem encantamen­to, não existem descoberta­s ou espantos.

Soube, encontrand­o pessoas ao redor do mundo, de que existem, de fato, viajantes que não conseguem se encantar em lugar algum. O que dizer dessas pessoas? What a shame! Apesar de tantas distâncias percorrida­s, de tantas malas feitas e tantos carimbos no passaporte, elas não estiveram, in fact, em qualquer lugar. Há muitas pessoas assim, unfortunat­ely. Adoram contar que foram para lá ou para cá, mas nada (nada mesmo) ficou em seus corações e almas.

Não há surpresas ou decepções. I mean: não há viagem. Did you get me?

‘Quando visito um lugar pela primeira vez, não deixo jamais de me encantar’

É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIO­S ULTRAMARIN­OS. SIGA-O NO INSTAGRAM @MRMILESOFI­CIAL

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