O Estado de S. Paulo

De barco, pelo Golfo de Ancud

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Williche é o que se lê na embarcação de madeira que nos levou para um dia de passeio pelas águas gélidas do Golfo de Ancud. O guia Javier me explica que é uma referência a um dos dois grupos indígenas da região, os chonos e os huilliches (de onde vem o batismo do barco). Faz todo sentido: toda história mais recente do arquipélag­o foi tecida por esses dois povos, afinal.

E isso fica evidente em antigos costumes e nos nomes dos lugares: quase todos preservam suas raízes pré-hispânicas. Javier também faz questão de ir me explicando, ao longo de 40 minutos de travessia até a primeira parada, sobre seus antepassad­os indígenas e sobre o encontro deles com os espanhóis, seus outros antepassad­os, a partir do século 16. Chelín O céu nublado e o silêncio humano na praça que recebe quem chega do mar me deixaram com a sensação de que, ali, o tempo passou apenas em termos que não são o do relógio. Não há delegacia, nada de hospital. Não fosse uma curiosa placa presa a um casebre com o nome de uma gigante cervejeira do Brasil, acharia mesmo que havia escapado aos dias atuais.

Paramos diante da mais importante construção da aldeia: a Igreja Nossa Senhora do Rosário. Também de madeira, traz apenas a fachada pintada em creme e azul, contrastan­do com a bandeira chilena fincada em uma das colunas dóricas da entrada. Suas laterais e a torre permanecem rústicas, com a cor da madeira escurecida pelos anos. Reparando dali da praça, ficava claro o que o animado guia Ariel explicava ao grupo: seu desenho frontal é como se fosse o de um barco, só que invertido.

A primeira construção da igreja data do século 18, mas a que resistiu até os dias atuais, de estilo neoclássic­o, estima-se ser de 1888. Declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 2001, pode ser visitada a qualquer momento – caso você encontre alguma igreja fechada, pergunte nas casas vizinhas quem pode abri-la, pois a chave costuma ficar com moradores.

Por dentro, a luz irradia o interior, com alguns poucos bancos de madeira e altar simples, onde estão Jesus crucificad­o, Nossa Senhora do Rosário e o Nazareno – a imagem é presença garantida nos templos chilotas e faz parte de uma festa anual que ocorre em várias ilhas, como a de Caguach. Preste atenção às colunas cuja textura imita o mármore e vá até a sala ao lado do altar, onde dá para entender melhor o sistema de encaixe da madeira em forma de raio que dispensa pregos e que é a base da construção das igrejas. “Se uma peça for retirada, toda a igreja terá de ser desmontada”, diz Javier. Logo atrás da igreja estão mais construçõe­s de madeira. Essas, porém, são casas coloridas em miniatura, meio amontoadas ao pé do morro. Trata-se de um típico cemitério chilota. Por que casas? Ariel explica que é para proteger da chuva quem leva comida e vai conversar com os falecidos.

A subida do cemitério até o alto do morro é curtinha e vale a bela vista da região, mesmo se o tempo estiver nublado. Com um binóculo, eu e meu grupo nos divertimos tentando apontar para a direção em que estavam nossos países – Brasil, Argentina, Austrália e Rússia. Quehui A passagem pela pequena Ilha de Quehui, de apenas 1.200 habitantes, foi curta e valeu mais pela chegada: de caiaque. No barco, o grupo se dividiu entre quem gostaria de ficar na embarcação e quem queria remar até a ilha. Eu e os russos optamos por remar. Eles, mais acostumado­s e em dupla, dispararam na frente. Eu, sozinha, fiquei para trás com Javier. Aprender o básico nem foi tão difícil. Duro mesmo foi confiar na minha capacidade física para chegar até onde devia.

Minhas mãos congelaram já nas primeiras remadas, a chuva voltou a cair e eu quase desisti. Mas, quando os braços aqueceram pela força produzida e eu enfim peguei o jeito, tudo foi ficando agradavelm­ente mais fácil. Os 40 minutos remando passaram rápido, e pude até curtir momentos de pausa para ouvir o som dos pássaros. Se você não for de remar, não se preocupe: os australian­os que seguiram de barco tiveram a chance de ver golfinhos, nós não. O único mamífero que deu as caras para todos foi um leão-marinho – a chance de vê-los aumenta a partir de novembro.

O retorno ao hotel foi em meio à comilança. A bordo do Williche, nos rendemos às delícias preparadas pelo chef Sebastián Bvron. Para acompanhar o almoço, vinho branco ou tinto e, claro, pisco, bebida tradiciona­l no Chile. Quando a chuva voltou a cair de forma torrencial, não tive dúvidas do que fazer: nada como tirar um cochilo depois de um dia de passeio e fartura.

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BRUNA TONI/ESTADÃO Chelín. Igreja Nossa Senhora do Rosário tem colunas de madeira que imitam mármore
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