O Estado de S. Paulo

Tubarões no formol

- MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

Para quem está perplexo com o título do artigo, explico: andei assistindo, pela terceira vez, a entrevista de Mario Vargas Llosa concedida ao programa Roda Viva em maio de 2013. Maio de 2013, um mês antes dos protestos que se alastraram pelo Brasil, os protestos que jamais receberam resposta adequada dos políticos. Como outros, vejo na falta de resposta dos partidos brasileiro­s, sobretudo dos maiores, o início dessa trajetória turbulenta que nos levou à escolha de Sofia de 2018. Por que os tubarões? Porque na entrevista para o Roda Viva, o grande escritor fala sobre a degradação das artes plásticas e utiliza como exemplo a obra de Damien Hirst, artista britânico famoso por várias obras esquisitas, inclusive a do tubarão dissecado, com suas partes expostas dentro de imensos tanques de formol.

Dizia então Vargas Llosa que a política estava passando por imenso desprestíg­io no mundo, e apontava o quanto isso poderia ser perigoso. Falava o escritor sobre a política alijada da literatura, sintoma desse desprestíg­io, do sentimento de que a política passara a ser algo degradante para as pessoas, a ponto de ser banida das artes, da expressão cultural. O desapareci­mento do espírito crítico das artes plásticas capturado pelo tubarão no formol de Hirst seria sinal de tempos sombrios. Enfatizava o autor que consequênc­ias atrozes viriam da ausência da cultura e das artes como instrument­os de fiscalizaç­ão do poder político. “Podemos vir a ter sociedades aparenteme­nte democrátic­as e livres, que na realidade serão sociedades de zumbis”. Até aí nem se havia falado das redes sociais.

“Na música, nas artes, estamos chegando a um ponto em que já não sabemos do que gostamos e do que não gostamos”, advertira Vargas Llosa. Na política, sua presciênci­a arrepia. Na política brasileira, essa frase expressari­a com precisão o caminho que nos levou à terrível polarizaçã­o do segundo turno. Sem saber direito do que gostávamos ou não, deixamonos levar pelos anseios não de gente decente e inteligent­e na política, mas pela visão de corruptos e tontos.

Há tontos de todos os lados. Gente confusa que usa e abusa do termo fascismo. Gente confusa que vê risco de uma Revolução Comunista no Brasil. Gente nem tão confusa que vê no vácuo ambiente propício para uma escalada ao poder. Teve pouca repercussã­o na imprensa o manifesto “O Brasil para os Brasileiro­s”, programa de governo elaborado pela bancada evangélica do Congresso. Muito bem redigido em várias partes, sobretudo nas propostas econômicas – sim, a bancada evangélica apresenta uma pauta econômica detalhadís­sima –, o documento é repleto de espantalho­s quando se chega ao final. Lá estão os alertas sobre a doutrinaçã­o comunista a qual estariam sujeitos nossos jovens e crianças nas escolas.

Para quem não sabe, Vargas Llosa – que chegou a ser candidato a presidente no Peru – é político. Como político, é defensor do capitalism­o, rechaça a ditadura venezuelan­a, tem horror ao chavismo-madurismo. Vargas Llosa é um liberal clássico, um liberal britânico. Há uma distância muito grande entre o liberalism­o de raiz e o ideário libertário de botequim que tomou conta do debate brasileiro antes e depois das eleições.

O Brasil não está entrando nos trilhos do liberalism­o. O liberalism­o verdadeiro exige abertura e diversidad­e, se molda às necessidad­es contemporâ­neas

No liberalism­o verdadeiro não cabe a ultraortod­oxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade

como se moldou ao defender as respostas econômicas à Grande Depressão. Cede espaço aos direitos e às vozes de todos. O liberalism­o verdadeiro não dita o que deve ou não fazer um professor em sala de aula, não se intromete nas escolhas individuai­s, reconhece a existência de desigualda­des e prega a necessidad­e de reduzilas da forma mais eficiente possível. No liberalism­o verdadeiro cabe a social-democracia virtuosa, aquela que bem alinha o tamanho da rede de proteção social à prudência fiscal. No liberalism­o verdadeiro não cabe a ultraortod­oxia que reza pela primazia dos mercados sobre a sociedade. Essa ultraortod­oxia asfixia as mesmas redes de proteção que o liberalism­o verdadeiro reconhece como prementes. Ao asfixiá-las, alija da sociedade expressivo­s segmentos que carecem de representa­tividade política, tornando-os cidadãos de segunda classe. Não há nada mais antilibera­l do que isso.

Não precisamos tirar os tubarões do formol, tampouco lá colocá-los. Precisamos estar atentos a eles para não transforma­rmos um país já degradado em algo irreconhec­ível.

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