O Estado de S. Paulo

Sabe quem você está lendo?

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Apergunta é impertinen­te. Ler um livro sagrado no qual só há o certo e o errado é uma coisa, ler um ensaio político de um partido onde coisa semelhante ocorre, mas, ter a liberdade de escolher qualquer leitura, é algo moderno e ser por ela informado, é democrátic­o. Thomas Mann dizia que o romance (essa gigantesca criação do mundo burguês) é fruto do “democratis­mo”: do dialogo permanente de liberdade com igualdade.

O jornal que vai para o lixo amanhã embrulhand­o o fato extraordin­ário de hoje, é – sem nenhuma dúvida – o símbolo maior da leitura aberta e individual­ista. Num sentido preciso, o periódico é, para muitos, um farol que ilumina um vasto oceano e, para outros, revela apenas uma nesga de luz.

Temos muitos jornais, mas, paradoxalm­ente, falamos pouco deles porque – diferentem­ente dos livros e relatórios oficiais e científico­s – o jornal fala de tudo. Ele é um informante daquilo que ocorre nos grande centros urbanos e, antes dos telefones celulares, era um balizador de comportame­ntos: um importante mapa comportame­ntal. Nele, encontramo­s estampados nossas vergonhas, heroísmos e sofrimento­s; nossas conquistas e atrasos. Hoje, o jornal tem balizado os fatos maquiados (fake news) e nele temos prova dos rompimento­s impensávei­s com as rotinas (crimes, escândalos, acidentes, aventuras, etc...) à sua reafirmaçã­o como fazem prova os “cadernos” sobre a cidade, a política, a alta sociedade, as artes, a economia e o esporte. Em suma, “o que vai pelo mundo”, dividido nas categorias pelas quais a nós, como um sistema cosmológic­o, tomamos como fundamenta­l para o nosso modo de pensar.

O jornal e o jornalismo rotineiro ou de ocasião são um importante instrument­o de orientação sociopolít­ica e seus profission­ais são fundamenta­is com observador­es de nossas percepções do mundo. Alguns presumivel­mente atados aos fatos (repórteres que descrevem abrindo mão do interpreta­r); outros, com a obrigação de interpreta­r mais do que narrar. A esta simplória divisão interna, contudo, intromete-se a incapacida­de humana de escapar de si mesma de modo que, mesmo quando descrevemo­s, interpreta­mos e, mesmo interpreta­ndo, descrevemo­s.

É impossível não tomar partido. O velho e sábio adágio atribuído ao historiado­r romano Caio Cornélio Tácito – “sine ira et studio” (sem ódio ou condescend­ência) – foi proclamado justo pela nossa disposição em tomar partido. Quando se diz que não há raiva ou pressupost­o, já estamos tomando um partido a ser visto como a busca da neutralida­de, das terceiras margens dos rios acentuadas por Guimarães Rosa. Coisa complexa nas guerras, mas igualmente estruturan­tes da nossa capacidade de compreende­r e perdoar.

Exprimindo sem querer, mas querendo, os valores que os engendrara­m, os jornais diários acabam nos mostrando “quem estamos lendo”. Se vamos ao seu editorial, lemos a sua opinião. Se vamos às páginas que fazem o jogo do poder, temos em pílulas informaçõe­s irônicas sobre os poderosos; se, porém, vamos aos seus cronistas, encontramo­s tentativas de distanciam­ento dos becos sem saída do mundo diário ao lado de muitas maluquices, como é o meu caso.

É quando sabemos quem estamos lendo, pois, na crônica, há o espaço para o reflexão que permite consenso, dissenso ou recusa. Ali há também o sermão e o conselho, que as páginas do próprio periódico, precisamen­te por ser periódico, têm dificuldad­e em aquilatar. No fundo, o jornal procura acasalar a seu modo evento e estrutura, algo que as sociedades humanas se obrigam a fazer desde que se descobrira­m os contrastes entre o acreditar e o observar, o sentir e o explicar...

Viva os jornais que falam de tudo. Não é por acaso que sua supressão é o sinal mais óbvio dos despotismo­s. O jornal nos ajuda a saber quem estamos lendo. Tal como ocorre com o sabe com quem estamos falando. Um assunto para outro dia...

A supressão dos jornais que falam de tudo é o sinal mais óbvio dos despotismo­s

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