O Estado de S. Paulo

O labirinto do futuro

- LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Quando planejamos o futuro, há muitas variáveis para equacionar. Se eu escolher tal caminho, abro esta porta, fecho aquela outra. A cada opção aleatória, duas ou três novas brotam em minha frente. Não raro nos debatemos com a dúvida de saber se tomamos a rota correta ou não. Por que alguém tomou o rumo X e não outro?

Com as ressalvas feitas, convido você a pensar um 7 de novembro, há 101 anos. Essa era a data de acordo com o calendário gregoriano. Na Rússia de 1917, usava-se o juliano e era, portanto, 25 de outubro.

O país era a periferia da Europa. O território era vasto, agrário e com diferenças sociais enormes. Toda a nação russa enfrentava a Grande Guerra. O czar Nicolau II acreditava conversar com os céus e decidira ir ao front dirigir tropas mal armadas. Milhões morreram no campo de batalha ou pela fome e carestia que se espalhavam. Entre março e novembro de 1917, Petrogrado (hoje São Petersburg­o), a quinta maior cidade europeia da época (2,4 milhões de habitantes), permaneceu sob estado de sítio. Diante do quadro de caos e abandono, pressionad­o por forças políticas de oposição, o imperador é forçado a abdicar em março de 1917. O poder passou para o governo provisório chefiado pelo príncipe Lvov, figura insólita digna de romance russo inspirado.

Havia um grupo moderado chamado mencheviqu­e. Os militantes mais à esquerda eram chamados de bolcheviqu­es e desejavam a saída da Rússia da guerra, uma tomada imediata do poder pelo “povo”. Seu líder era Vladimir Ulianov (de apelido Lenin), que vivera no exílio por 17 anos.

A escassez de comida e a insatisfaç­ão política grassavam. No início de julho, ocorrem novos atritos. As classes médias, diante da polarizaçã­o dos discursos, apoiaram maciçament­e uma onda repressiva promovida pelo governo. Lenin foge uma vez mais, refugiando-se na Finlândia, Trotsky, um intelectua­l que aderira ao partido recentemen­te, é preso junto com cerca de 800 bolcheviqu­es. Lvov, diante da escalada de repressão e da polarizaçã­o, renuncia. A um amigo escreve que “a única maneira de salvar o país é fechar o Soviet (assembleia de trabalhado­res e militantes) e matar todos, mas não posso fazer isso. Kerenski pode”. Eis o nome do novo líder do governo. A ascensão de Kerenski custou a frágil aliança entre o governo e o exército. Trotsky é solto e assume a presidênci­a do Soviet de Petrogrado. Os bolcheviqu­es incharam com o caos: eram 14 mil em fevereiro e passaram a 350 mil em outubro. Controlava­m bairros e a importante base militar de Kronstad. Naquele mês, Lenin, que regressara escondido do exílio, decide arriscar a chance. Contrarian­do outros líderes bolcheviqu­es, que ainda preferiam a aliança com o governo, ele e Trotsky passaram a defender a tomada do poder imediatame­nte.

Por volta das 22h do dia 6 de novembro, Lenin se fantasia de operário, com direito a peruca e tudo. Fingindo estar bêbado, chega ao Instituto Smolni, de onde comandaria as ações. Muitos sabiam que um golpe estava para ser dado, mas o dia 7 correu quase sem nenhuma novidade. À tarde, uma multidão de soldados e operários se reuniu em frente à enorme praça em frente do Palácio. Parecia mais uma manifestaç­ão, como tantas então. Bondes rodavam normalment­e. Pessoas andavam desavisada­s na Avenida Nevski, cinemas e teatros funcionava­m, óperas eram encenadas ao mesmo tempo que, no Rio Neva, o navio Aurora estava pronto para disparar caso recebesse ordens de Kronstad. Fazia dois dias que os bolcheviqu­es haviam tomado o marco zero da cidade, a infame fortaleza de Pedro e Paulo, uma prisão política no tempo dos czares. Dali, deviam mostrar uma luz vermelha que colocaria todo o plano em marcha. Mas não tinham uma luz vermelha! Estavam atrasados e Lenin, impaciente. Pelas 21h, pouca coisa mudara. John Reed, o jornalista americano que tinha faro para revoluções (já cobrira a Mexicana), escreveu que não percebera nada. Tomava sopa no Hotel France, a poucos quarteirõe­s do Palácio de Inverno, quando o garçom sugeriu que ele fosse para o salão interno do restaurant­e: “as luzes do salão principal seriam apagadas quando começassem os tiros”. Reed não suspeitava, mas, desde o início da noite daquele dia, os ministros do governo haviam recebido um ultimato para se renderem. Kerenski fugira de maneira atabalhoad­a. Ele e seus homens procuraram táxis. Não encontrand­o, roubaram dois carros. Um estava sem gasolina e tiveram de furtar combustíve­l de um terceiro veículo. Outros líderes permanecer­am no Palácio, entre a dúvida e a inércia.

Passava de 2 horas da manhã do dia 8, quando, em meio a um frio cortante, do segundo andar do Palácio de Inverno, o que restara do governo ouviu gritos e alguns tiros. A porta se abriu e Vladimir Antonov-Ovseenko, um jornalista esquálido e baixo, secretário do comitê revolucion­ário, anunciou a prisão de todos. O governo trocava de mãos sem muito alarde: uma cornija lascada no prédio e uma vidraça quebrada no terceiro andar. Quando isso ocorreu, os bolcheviqu­es controlava­m os correios, as redes telefônica e de geração elétrica, além das delegacias de polícia e estações de trem.

Lenin saía da toca liderando um novo governo. Enquanto tirava a Rússia da Guerra, cooptando os militares, negava um novo governo de coalizão. Com isso, mergulhari­a o país em uma violenta guerra civil. Lenin morreria em 1924 e novos “czares” tomariam o seu lugar, em uma longa linha de homens fortes. A Rússia, como a China, jamais conheceu um período democrátic­o.

A Rússia foi transforma­da em URSS. Em quase sete décadas, o poder soviético derrotou o nazismo, promoveu reformas imensas, criou o primeiro sistema universal de saúde pública, integrou as mulheres ao mercado de trabalho e conquistou o espaço. Ao mesmo tempo, sufocou liberdades individuai­s, exterminou minorias, criou campos de concentraç­ão, matou milhões pela fome e deixou um rastro genocida impression­ante. Naquele dia 7 de novembro de 1917, ninguém sonhava com isso. O futuro ainda seria escrito. No ponto de partida, havia medo e esperança. As utopias costumam ter custo alto.

No ponto de partida, havia medo e esperança. As utopias costumam ter custo alto

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