O Estado de S. Paulo

Um bom conselho

- JOSÉ SERRA SENADOR (PSDB-SP)

Estudo da Organizaçã­o para a Cooperação e o Desenvolvi­mento Econômico (OCDE), de 2016, analisou a gestão fiscal e as instituiçõ­es existentes em 16 países, incluindo o Brasil. Uma das conclusões da pesquisa deveria entrar na agenda do Congresso: a inexistênc­ia de um conselho para monitorar as contas públicas das três esferas de governo compromete a performanc­e da política fiscal brasileira.

A crise fiscal no Brasil, sobretudo nos Estados, é alarmante. Segundo o Banco Mundial, tudo o mais constante, cerca de dez Estados estarão insolvente­s em 2021, se prevalecer o ritmo lento de recuperaçã­o econômica. A aritmética é simples: em 2017, as despesas incomprimí­veis, determinad­as por lei, passam de 100% das receitas líquidas em cinco Estados e de 90% em quase todos os governos estaduais!

Ironicamen­te, apesar de boa parte das receitas e despesas públicas no Brasil ser gerida pelos governos subnaciona­is – nesse critério, somos um dos países mais descentral­izados do mundo –, a OCDE não classifica a Federação brasileira como descentral­izada.

Nossos governos estaduais e municipais, diferentem­ente do que acontece nos Estados Unidos e no Canadá, não gozam de autonomia completa para conduzir sua política fiscal: não criam regras próprias; não podem emitir títulos; não podem alterar bases de cálculo de tributos; e não têm discricion­ariedade para administra­r suas despesas. No Brasil é o governo central que estabelece as regras do jogo. A Constituiç­ão federal, a Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF), o Código Tributário Nacional e a Lei Geral dos orçamentos públicos são normas de competênci­a exclusiva da União.

No campo tributário, é a lei federal que estabelece os fatos geradores e as bases de cálculo dos impostos federais, estaduais e municipais. Em relação às despesas, é a norma federal que define quanto Estados e municípios podem gastar com educação e saúde. É, também, lei federal que proíbe Estados e municípios a emitirem títulos de dívida e regula as condições para demais operações de crédito. Por último, é a Constituiç­ão federal que cria o regime jurídico dos servidores das três esferas de governo, as regras da previdênci­a do setor público e a vinculação da remuneraçã­o das carreiras da elite do Judiciário. Trata-se, enfim, de um líder federativo semelhante ao alemão.

Aqui surge uma questão fundamenta­l. As inúmeras regras fiscais e orçamentár­ias previstas nas normas federais que valem para todos os entes não têm sido suficiente­s para evitar o atual colapso das contas públicas. Como foi possível enveredarm­os por um caminho tão repleto de medidas fiscais mal chamadas “criativas”? Para citar alguns exemplos: transações realizadas fora do Orçamento, contabiliz­ação de despesas para contornar regras fiscais, aumento de despesas obrigatóri­as desacompan­hadas das previsões de impacto fiscal e a concessão de incentivos tributário­s sem a correspond­ente compensaçã­o fiscal.

No artigo As Leis da Inércia, publicado nesta página no dia 28/6/2018, traçamos o seguinte diagnóstic­o: “Uma curiosa contradiçã­o marca nossas dificuldad­es fiscais: à medida que crescem o déficit e a dívida pública, aumenta o estoque de normas que, idealmente, deveriam facilitar o controle tanto do déficit quanto da dívida. Somos pródigos na edição de regras de controle fiscal. Mas elas são inconsiste­ntes”. Vale, portanto, repetir a conclusão do estudo da OCDE: falta no País um órgão para monitorar a política fiscal adotada pela União, por Estados e municípios.

A boa notícia é que já existe previsão legal para a implantaçã­o deste órgão. Trata-se do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), previsto pela LRF. O conselho teria como objetivo harmonizar e padronizar os procedimen­tos e as práticas da gestão fixadas na LRF. Mais ainda, o novo órgão se dedicaria ao monitorame­nto da política fiscal adotada pelos governos federal, estadual e municipal dentro de uma base conceitual uniforme. Teria, até, a responsabi­lidade de divulgar as estatístic­as fiscais em base padronizad­a, de modo a revelar os governos com melhores e piores indicadore­s fiscais.

No longo prazo, essa transparên­cia ampla poderia ser o embrião de um sistema em que a solvência dos governos estaduais e municipais seria diretament­e acompanhad­a pelo mercado. Os mais organizado­s passariam a ter acesso até mesmo ao mercado de capitais.

Diga-se que o Banco Mundial defende esse tipo de regime fiscal. Uma referência institucio­nal a respeito é o Conselho de Estabilida­de estabeleci­do em 2010 na Alemanha como parte das reformas implementa­das depois da crise financeira internacio­nal de 2008. O conselho é um órgão conjunto da Federação alemã e dos Estados federados, consagrado no Artigo 109 da Carta alemã. Foi criado para reforçar o quadro institucio­nal e garantir a sustentabi­lidade dos orçamentos públicos do governo e dos Estados federados.

É importante, também, demarcar a fronteira institucio­nal do CGF em relação à Instituiçã­o Fiscal Independen­te (IFI) criada no Senado Federal. A IFI tem como objetivo gerar análises independen­tes no âmbito da política fiscal. Seu papel é avaliar os parâmetros e cenários macroeconô­micos que embasam o Orçamento no âmbito do governo federal. Funciona como um cão que late, mas não morde. Tais instituiçõ­es na literatura internacio­nal são conhecidas como whatchdog da política fiscal. Mas o CGF tem papel completame­nte distinto: seria um órgão com representa­ção intergover­namental, dedicado à função de normatizar, harmonizar e padronizar as regras fiscais e orçamentár­ias no âmbito da Federação.

Nesse sentido, o Conselho de Gestão Fiscal seria o coração da responsabi­lidade fiscal na Federação brasileira. Permitiria evitar artifícios contábeis e fiscais que compromete­m a credibilid­ade da política fiscal adotada nos três níveis de governo. Entre as reformas a serem implementa­das no País para promover a estabilida­de, a implantaçã­o do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso.

A implantaçã­o do CGF deveria merecer o apoio das principais forças políticas do Congresso

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