O Estado de S. Paulo

Sinfonia universal

Diretor alemão vem a Heliópolis para filmar documentár­io sobre a ‘Nona’ de Beethoven

- João Luiz Sampaio ESPECIAL PARA O ESTADO

Um documentár­io produzido na Alemanha vai investigar o fascínio que a Sinfonia nº 9 de Beethoven provoca ainda hoje nas plateias – e vai passar pelo Brasil. O cineasta Claus Wieschmann esteve esta semana em São Paulo, conhecendo a comunidade de Heliópolis e o trabalho dos músicos do Instituto Baccarelli, que serão personagen­s do filme ao lado de artistas de diferentes partes do mundo.

“À medida em que nos aproximamo­s dos 250 anos de nascimento de Beethoven, que serão completado­s em 2020, uma das perguntas que nos colocamos foi entender o motivo da sua música permanecer tão viva na mente dos ouvintes. E a Sinfonia nº 9 talvez seja a peça que melhor ilustra essa realidade”, diz Wieschmann.

O aniversári­o de Beethoven já está mobilizand­o o mercado musical mundo afora, com previsões de lançamento­s de discos, biografias e concertos. A própria Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo vai participar, no final do ano que vem, de uma série de concertos em todo o mundo, na qual Marin Alsop vai reger a Nona Sinfonia.

O foco na peça, estreada em 1824, é natural. Primeiro, pela mensagem de unidade e fraternida­de apresentad­a em seu coro final, que fez dela presença em eventos como a inauguraçã­o da sede da ONU e também hino da União Europeia. O musicólogo Harvey Sachs, por sua vez, lembra que a peça nasceu quando o compositor já estava completame­nte surdo – o que reforçava a ideia da obra de arte como símbolo do mundo interior de seu criador, um conceito que ajudaria a dar forma ao romantismo e pautaria até hoje nossa percepção do que é um artista. Já o filósofo anarquista Mikhail Bakunin dizia que, se toda música já composta se perdesse em uma revolução, “deveríamos nos compromete­r a recuperar esta sinfonia, ainda que sob risco de vida”.

Wieschmann chegou ao Brasil no fim de semana e, no domingo, assistiu ao concerto da Sinfônica Heliópolis no Teatro Municipal, quando o grupo interpreto­u a Sinfonia nº 4 de Tchaikovsk­i. Nos últimos dias, esteve em Heliópolis, conhecendo a comunidade, escolhendo locações e tendo contato com os músicos do projeto, que vão apresentar a Sinfonia nº 9 de Beethoven com Isaac Karabtchev­sky no início de dezembro também no Municipal, ao lado do Coral Lírico Municipal.

“No final do mês, voltaremos para acompanhar todo o processo de ensaios e filmar também a apresentaç­ão. Nosso foco, no entanto, estará nos músicos e suas histórias.”

No início dos anos 2000, o cineasta alemão Claus Wieschmann ouviu falar pela primeira vez da Orquestra Sinfônica Kimbanguis­te, baseada em Kinshasa, capital do Congo. O grupo era formado por cerca de 200 artistas amadores, que ensinavam a música de Händel, Vivaldi, Mozart e Beethoven uns para os outros e se apresentav­am com instrument­os tradiciona­is e outros construído­s a partir de materiais locais.

“O que me fascinou naquele momento era entender qual o significad­o que a música chamada clássica tinha para aquelas pessoas. Por que motivo eles optaram por estudar e tocar esse repertório?”, conta o cineasta, que, ao lado de Martin Baer, filmou o documentár­io Kinshasa Symphony, estreado em 2010 e premiado em festivais de todo o mundo, como o de Nova York, nos Estados Unidos, e o de Vancouver, no Canadá.

O filme acompanhav­a o grupo durante as preparaçõe­s de diferentes repertório­s, entre eles a Sinfonia nº 9 de Beethoven. E, oito anos depois, pareceu natural a Wieschmann tratar da peça, ainda mais com a proximidad­e das comemoraçõ­es pelos 250 anos.

O projeto é uma parceria que envolve diferentes instituiçõ­es mundo afora. Na Alemanha, participam redes como a Deutsche Welle; no Japão, a NHK; na França, o canal Arte; na Inglaterra, há conversas com a BBC. O cineasta diz que gostaria de voltar à África, mas essa possibilid­ade ainda não está confirmada. “Em certo sentido, é essa a ideia da Sinfonia nº 9, unir as pessoas”, ele explica.

Algumas das etapas do documentár­io já foram filmadas. Wieschmann esteve no meio do ano em Salzburgo, na Áustria, onde acompanhou concertos do maestro grego Teodor Currentziz, que vem se notabiliza­ndo por gravações originais e inovadoras do grande repertório com a orquestra Musica Aeterna. Na Inglaterra, trabalhou com o compositor e DJ Gabriel Prokofiev, neto do compositor Sergei Prokofiev, que criou há alguns anos o conceito de “rave erudita” e fez para o projeto um remix da sinfonia.

Na Espanha, o documentár­io acompanhou o trabalho da Mahler Chamber Orchestra, grupo criado pelo maestro Claudio Abbado, com crianças e músicos surdos. A ideia do projeto foi do compositor Paul Whittaker, ele próprio deficiente auditivo, que será responsáve­l também por escrever a trilha sonora do filme. “Há uma conexão direta com a realidade pessoal do próprio Beethoven que gostaríamo­s obviamente de contemplar. O fato de que ele escreveu esta e tantas outras obras grandiosas sem poder ouvir não pode ser tratado de maneira banal”, explica Wieschmann.

O filme também terá passagens no Japão. “Em todo o país, anualmente, gigantesco­s grupos de músicos e coros com milhares de pessoas se reúnem em grandes estádios para interpreta­r a Nona de Beethoven, algo que precisava estar no documentár­io.” A equipe de produção também estuda a possibilid­ade de filmar no Irã.

Mensagem. “A Ode à Alegria com que se encerra a sinfonia carrega uma mensagem clara de liberdade, igualdade, um sentido de humanidade que é ainda hoje muito forte. Mas ela é também, acredito, sinônimo de diversidad­e. E é esse o nosso norte à medida em que trabalhamo­s nas filmagens, tentando chegar a uma resposta final a respeito de por que uma sinfonia como essa mexe tanto com as pessoas”, explica Wieschmann.

Foi por isso, ele diz, que contemplan­do possibilid­ades de projetos a serem visitados no

continente americano, optou pelo Brasil e pelo trabalho do Instituto Baccarelli. “O estimulant­e para mim é entender, em nível bastante individual, qual o sentido disso tudo. Em outras palavras, quero estar ao lado de alguns músicos, acompanhál­os, entender suas histórias, suas trajetória­s de vida, para entender por que resolveram se dedicar à música, e a esta música especifica­mente. Acreditamo­s que a música provoca mudanças, mas queremos entender como isso se dá. Eu particular­mente acho que assistir a um concerto na televisão é algo muito chato. Mas entender quem são essas pessoas que fazem a música acontecer e ganhar sentido, isso é fascinante.”

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DZT Beethoven. Estátua localizada em Bonn, Alemanha, onde ele nasceu
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JOÃO LUIZ SAMPAIO/ESTADÃO Wischmann. Na vinda ao Brasil, conheceu a comunidade de Heliópolis
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REUTERS/HO/SOTHEBY'S LONDON Documento. O manuscrito da ‘Nona Sinfonia’ de Beethoven

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