O Estado de S. Paulo

Preocupaçõ­es injustific­adas

- ALMIR PAZZIANOTT­O PINTO ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Análises objetivas, baseadas em fatos concretos, levam-me a acreditar que são injustific­ados os temores de golpe contra o Estado Democrátic­o de Direito, apregoados durante a campanha presidenci­al. Desde a promulgaçã­o, há pouco mais de 30 anos, a Constituiç­ão tem ultrapassa­do rigorosas provas de resistênci­a e força, como se observou durante os processos de impeachmen­t de Fernando Collor e Dilma Rousseff, nas ações penais do mensalão e da Operação Lava Jato, na condenação e prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Continua presente em nossa memória o golpe militar de 1964. Não me parece ser esta a ocasião para discutir se foi golpe, contragolp­e, movimento militar, quartelada ou revolução. O fato é que a queda de João Goulart era tragédia previsível desde o momento em que, com uma imprudênci­a que beirava os limites da insanidade, apoiou a grande greve de outubro de 1963 e passou a estimular a violação dos princípios de hierarquia e disciplina que regem as Forças Armadas, por praças e sargentos.

Acreditava em imaginário­s dispositiv­os militar e sindical que lhe dariam sustentaçã­o. A partir, porém, do momento em que o general Olímpio Mourão Filho pôs na estrada a infantaria do I Exército, aquartelad­a em Juiz de Fora, constatou que estava isolado e indefeso. A rápida adesão de governos estaduais e de poderosas unidades das Forças Armadas convenceu o presidente Goulart a bater em retirada. Do Rio de Janeiro, onde estava no dia 31 de março, voou para Porto Alegre e, após breve escala em Brasília, seguiu para Montevidéu a fim de pedir asilo ao governo uruguaio.

No espaço de horas o governo deixava de existir e o Comando Supremo da Revolução assumia o poder. No dia 9 de abril foi baixado o primeiro ato institucio­nal, em que se afirmava, sem meias palavras: A revolução vitoriosa se investe do Poder Constituci­onal. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituin­te. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituin­te, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituin­te.

Confirmava-se a profecia relatada no livro Jango, um Depoimento Pessoal, no qual o autor, João Pinheiro Neto, registrou que, quando exercia o cargo de ministro do Trabalho, Jango lhe dizia: “Tu que és um menino inteligent­e, diga a esses homens (referia-se às lideranças sindicais) que não forcem demais, que me deixem um pouco tranquilo”. E acrescenta­va: “Podes anotar, se me apertarem demais e eu cair, virá por aí uma ditadura militar que vai durar vinte anos. E quando isso acontecer, os nossos líderes sindicais não poderão andar nem na rua (Ed. Record, RJ, 1993, pág. 39).

A transição para o regime democrátic­o foi arquitetad­a pelo presidente Ernesto Geisel (15/3/1974 a 15/3/1979) e executada pelo presidente João Batista Figueiredo (15/3/1979 a 15/3/1985). A partir da década de 1970, cansada de autoritari­smo a sociedade civil se reorganizo­u em torno do Movimento Democrátic­o Brasileiro (MDB), uma espécie de frente ampla onde se concentrav­am as correntes oposicioni­stas. O MDB cresceu nas eleições de 1974 e 1978. Em 5/1/1985 elegeu, por votação indireta no Colégio Eleitoral, a chapa Tancredo Neves-José Sarney. O que aconteceu a partir daí pertence à História e dispensa consideraç­ões.

O exercício do poder ao longo de 20 anos convenceu as Forças Armadas de que deveriam afastar-se da política, para se limitarem às missões institucio­nais. Para isso contribuiu o Estatuto dos Militares, aprovado pela Lei n.º 6.880, de 9/12/1980, que impede a oficiais generais indefinida permanênci­a em atividade no topo da carreira. Ao atingir a idade-limite de 66 anos, o general de exército, o almirante de esquadra, o tenente-brigadeiro vão para a reserva. O mesmo se dá com o oficial ultrapassa­do em duas oportunida­des de promoção por outro mais moderno, ou ao completar quatro anos no comando de unidade. O estatuto impede a repetição de casos como o do general Góis Monteiro (1889-1956), que sentou praça em 1904 e deixou o Exército em 1952. Ao longo desse período, além de comandar tropas, conspirou, sustentou e derrubou presidente­s.

Militares são gozam de vitalicied­ade, como os membros do Poder Judiciário, e não são reelegívei­s, como deputados e senadores. Têm a hierarquia e a disciplina como compromiss­os de vida e se encontram sob o comando supremo do presidente da República. A permanente renovação dos quadros é obstáculo à formação de lideranças, em posição de comando, com eventuais pretensões golpistas. Por outro lado, as circunstân­cias atuais em nada se assemelham ao que ocorreu em 1964.

Testada repetidame­nte em eleições arduamente disputadas, a Constituiç­ão de 1988 paira sobre a Nação no exercício da autoridade que lhe conferiu a soberana Assembleia Nacional Constituin­te.

Jair Bolsonaro foi eleito por ampla maioria de votos. Seria temerário, inútil, e irresponsá­vel qualquer tentativa de pôr em dúvida ou contestar a legitimida­de do mandato que lhe outorgou a Nação. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representa­ntes eleitos, prescreve o artigo 1.º, parágrafo único, da Carta Política. As expectativ­as são de que o próximo presidente, fiel aos princípios do Estado de Direito Democrátic­o, realize as reformas indispensá­veis à retomada do cresciment­o e à geração de empregos.

Se em algum porão a ideia de golpe é articulada, não brotou no interior do próximo governo. Espera-se que a oposição liderada pelo PT, inconforma­da com a derrota, não enverede pelo caminho da aventura. Radicalism­o e ódio, neste momento de esperanças, significa afrontar a vontade do povo que aspira viver em paz.

Se em algum porão é articulada a ideia de golpe, não brota do próximo governo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil